quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Leituras de fim de Verão III

Do livro citado: das descrições mais belas de um qualquer início de ano lectivo em qualquer escola portuguesa. Vinte anos passados e "tudo como antes..."

CONHECIDOS E DESCONHECIDOS: EIS-NOS PROFESSORES!

" Corre o fim do Verão e o tempo é de expectativa. Transportam-se restos de rotinas de outros lugares, sinais apócrifos de inacessíveis sonhos, no ruidoso encontro dos corpos, atestando o retorno de férias. Dentro de dias voltar-se-á a ser professor, revestindo-se então, esses mesmos corpos, da rotina de um outro tempo naquele lugar e dos sinais de uma inacessibilidade de duvidosa pureza.


Despercebidamente se vai resvalando para a enormidade envolvente do espaço, que outra gente, a quem outros sinais definirão uma nova face, preencherá em breve. Desapercebidamente se vai deixando de estacar após o portão, na familiaridade desse espaço sem sentido, reconhecendo-lhe na monotonia das formal o significado de um caminho que se percorrerá sem pensar, dia a dia, num tempo prestes a recomeçar. Desapercebidamente as pessoas vão chegando, refazendo-se professores.

Hoje há reunião geral. Ir-se-ão receber os horários e saber quem, em sorte, nos caberá.


Na ampla sala preparada para o efeito, cadeiras alinhadas esperam. Uma mesa com cinco lugares, dispostos na frente de tudo o resto, dá ao conjunto o aspecto tradicional do corpo docente de qualquer escola suficientemente afortunada para o poder albergar de uma só vez, num único espaço.


Vou entrando com vagar, trocando saudações ou dois dedos de conversa, aqui e acoli, exibindo a familiaridade de um pouco distante de quem, sendo da casa, lhe conhece os cantos e os segredos. Olho em volta e logo detecto os que ainda o não são.


Espalhados, como que obedecendo a uma estratégia que lhes defenda a intimidade, estão as "caras novas", os que, por algumas horas diárias, aqui habitarão nos próximos meses. Não se sentem ainda à vontade e, como podem, arrumam-se pelo espaço ao qual, no fundo, começam já a subordinar-se. Uns folheiam qualquer coisa com exaustivo interesse, outros com eficiência um pouco exagerada, preparam papel e lápis para tirarem apontamentos do que se venha a dizer; há os que encontraram alguém a quem se fixam em recatado dialogo, momentâneo escape do desconforto de estarem ali, e há também os que olham apenas, numa habituação meio irónica, meio indiferente a anual migração.


Os que este ano lhe escaparam, agrupam-se entre o barulhento e o atrevido, preenchendo o espaço de avisos e sinais que ostentam a posse de pequenas parcelas do obscuro território dos professores. Bem ou mal-amados, acenam aos que apenas chegaram o secretismo das palavras e dos gestos com que vão marcando a sua passagem por ali. Assim o crêem.


Aos poucos todos se aquietam, gigantesco grupo de conhecidos e desconhecidos, agora já só professores em frente de quem lhes ira ditar os traços com que desenharão seus perfis.


As palavras trazem as habituais saudações e os desejos de que tudo corra como previsto, aceite e estabelecido. As regras que ali nos fazem, são expostas, explicadas de um modo que nos faz pensá-las anteriores a nos próprios como se, sempre outros e não nos, as tivessem feito e assim, limpos dessa vergonha, lhes vamos obedecendo quase desinteressadamente. Depois há também as outras, intocáveis, as do sistema, que também não fomos a fazer, mas que também a preciso seguir, embora com desprezo, porque do seu cumprimento nos vem o ganha-pão. 0 mundo dos desejos, o alcance dos sonhos, a força de cada vontade são coisas moldáveis, de relativa tolerância. Os lugares estão marcados, as imagens projectadas, limitado o território que cabe a cada um e a esses outros que, da única mesa, nos falam. As tarefas que ali nos trazem, nos tornam irremediavelmente professores. Que cada um o entenda como quiser, contando que professores permaneçam, que o grupo que agora preenche o espaço alinhado em cadeiras, está pronto a aceitar cada um, não como cada um, mas como professor cumprindo-se numa cumplicidade de culpa e esquecimento.


Cada um o entendeu como quis, mas o titulo que esse espaço torna repentinamente tão real, a um elo que indiscriminadamente nos une daqui para a frente, acima de gostos e de crenças. E um papel que, quer queiram quer não ,iremos representar melhor ou pior até à consumação da próxima Primavera.


Responsável representante de herdados bens, aqui estou. Com a lentidão dos actos premeditados, assim me vejo neste vagaroso começo de esquecimento que todos os anos se repete, afastando-se de mim, que fiquei lá fora ao portão da escola, olhando a estrada. Aqui estou flutuando por entre o fingimento compenetrado de apreender o significado deste papel; por entre a ironia que a entoação põe nas palavras com que demarco a minha posição diferente; por entre o desprezo que o meu sorrir entorna sobre os outros; por entre a superioridade de um gesto com que , me distingo deles. Eu, entre os poucos conscientes, os que sabem ao que vão, os que sem duvida contribuiriam para a mudança, se mudança houvesse!


Com complacência ou orgulhosa humildade, carregadores de sabedoria a ser distribuída, sem que jamais se saiba bem a quem, eis-nos, professores apenas, esperando por quem em sorte nos vier a caber. Eis-nos, recebendo, arrumada nas horas de cada dia, a absurda prisão das palavras com que nos cumpriremos junto de quem, diferente sorte cumprirá. Descansemos pois, que os seus destinos nos vêm legitimar por mais um ano, por mais um ano, os seus destinos nos viriam legitimar a existência.


Um comentário:

Raul Martins disse...

É sem dúvida uma belíssima descrição de um qualquer ano lectivo em qualquer escola... e "tudo como dantes".
.
Obrigado pela partilha.
.
E vou ter que esperar pela parte IV para saber qual é o livro?
.
Fico à espera.
.
Carpe diem!