sábado, 24 de dezembro de 2011

RUY BELO, NATAL

A Poesia deste Homem, os seus escritos marcaram-me, marcam-me de uma maneira profunda e especial. Retorno vezes sem conta à Terra da Alegria, que deve ficar perto de Aquele Grande Rio Eufrates. Um texto belíssimo, polémico, mas de um cariz cristão tão certeiro, tão fecundo que deveria ser objecto de reflexão de todos que se dizem cristãos, sobretudo os de sacristia, os soberbos e vaidosos papa-hóstias, os "sacerdotes-lacoste" ou acácios - barrigácios ( e meu deus, como a igreja ainda os vai tendo!).

Um texto longo, de leitura nada fácil, mas de iluminações certeiras e súbitas. "Tremeluzências" nesta escrita maravilhosa de Ruy Belo. Para quem tiver paciência de...

Agora parto para os MEUS, para aquilo que vale a pena. Tudo deles e neles aconchegado em MIM. Pertenço-lhes na infinidade. Nem é uma questão de dádiva, é um questão de SERMOS. Uma família é isto, será sempre isto se o lutarmos de o ser.




REFLEXÕES SOBRE O NATAL

"Aí temos mais uma vez o Natal. Chega inexoravelmente, como o cair das folhas ou a velhice. Veio éramos nós pequenos, vem hoje que a vida passou por nós, continuará a vir amanhã independentemente de nós. O que de nós depende é recebê-lo ou não. Transmitiram-no-lo os nossos pais, olhámo-lo originalmente com esses olhos lavados que trouxemos ao mundo, capazes ainda da grande intensidade de uma primeira visão. Que terá acontecido depois? Os dias repetiram-se, alguma coisa ruiu perto de nós. Continuará a vir o feriado nacional ou a festa da família, mas não há nada que nasça dentro de nós, como antigamente. E, no final do ano, nem teremos coragem de deitar pela janela fora as coisas velhas, porque ficaríamos nus. Foi Natal lá fora, nos outros, mas em nós ninguém nasceu. Talvez ombros alheios nos tenham contagiado uma certa animação por essas ruas engalanadas, um vago sentimentalismo ter-nos-á empurrado para dentro de um comboio, a caminho da família, da quinta ou da aldeia.


Nunca, é certo, o Natal foi tão municipal como hoje. A Câmara interessa-se sinceramente pelos seus vizinhos e manda erguer em sítios bem visíveis presépios colectivos, procede à iluminação feérica das ruas, faz vigiar convenientemente o trânsito. Mas ou não há espaço para uma salutar solidão ou a solidão que nos invade é simplesmente nossa, não há quem, superior a nós, diferente de nós, a povoe. Não sabemos ou esquecemos em nome de quem nos reunimos.


E, no entanto, a vinda de Deus à terra renova todas as coisas. Ai de nós se Cristo não tivesse nascido na nossa terra! Seria inútil e ilusório qualquer outro nascimento. Nenhuma outra cidade nos estaria prometida. A realidade dificilmente aceitável destes pobres dias não encobriria nenhuma autêntica realidade. Esta nossa inadequação ao quotidiano, esta vida quebrada, a desconexão de todos os gestos presentes, de todos estes acontecimentos, esta condição pesada do homem não se poderiam identificar em relação a nenhuma pátria perdida.


Sem Cristo, nem mesmo a história teria sentido ou conteúdo. Cristo reconcilia-nos com Deus, só ele de entre os homens merece atrair a atenção de Deus sobre esta pobre humanidade apeada da sua primitiva grandeza. Ele é o Verbo, a palavra de Deus. Se Deus nos falou pelos profetas é porque nos haveria de falar pelo seu filho. Sem Cristo nenhum homem poderia conhecer Deus nem Deus repararia nos homens. O mundo seria um mundo implacavelmente fechado, entregue às suas rígidas leis. Nesse mundo dito de uma vez para sempre, nenhum rosto nos teria sorrido nem indicado caminho algum.


O Natal é um pouco isto e muitas outras coisas difíceis de dizer assim. Ainda hoje, ou se comemora o nascimento de Cristo ou e inútil comemorarmos os mais belos sentimentos, os mais nobres ideais. A possibilidade de Cristo vir estava no inicio dos tempos Não é por mera questão de ordem que contamos o tempo relativamente à vinda de Cristo. O dia 25 de Dezembro e por isso o centro do ano. Nele se comemora o facto histórico, humano e sobrenatural ao mesmo tempo, que deu inicio a nossa era e conteúdo e significado a toda a história anterior e futura. De tal maneira que o ano de 1959 marca o tempo que decorreu entre a encarnação do filho de Deus e os dias que vivemos. Festejamos uma vinda, um regresso. Nessa donzela da nossa raça que dá à luz um filho, nessa aceitação e reconhecimento generosos de Deus estão todas as nossas grandes capacidades, toda a nossa generosidade. A menor ansiedade quotidiana o menor desejo de renovação que por vezes nos assalta ao virar uma esquina, no meio desta nossa cidade, é símbolo desse desejo de Deus.


Dia 25 de Dezembro, dia de Natal. Só secundariamente se lhe pode chamar dia da família. O que começou por congregar as pessoas foi o Menino Jesus, foi ele que as fez vir de longe, de terras distantes e de absorventes cuidados, para se debruçarem sobre esse Deus desprotegido, mais admirável por essa aceitação por essa confiança no mundo e nos homens do que pela absoluta pobreza em que quis nascer. Só mais tarde, ao levantar os olhos dessa figura absorvente de criança, os membros da família terão reparado que se encontravam unidos. Deixaram de olhar para Deus e passaram a olhar uns para os outros. E assim se veio perdendo o sentido do Natal. De tal maneira que hoje, por esses jornais, por essas simples agendas fora, o Natal tende a ser a festa da família. Esqueceu-se que há uma realidade por trás de todo o movimento de gente que enche os comboios, sobrecarrega de trabalho o serviço dos Correios e requer a intervenção do Grémio dos Lojistas para decretar horas especiais de encerramento do comércio. Na alegria das crianças, no aconchego dos lares, no colorido das ruas, oculta-se um mesmo motivo a aproveitar por todo aquele que não quer virar o rosto às realidades.


Mera questão de palavras? É possível que sim. No entanto, a gramática está longe de ser um instrumento tão inocente como poderia parecer à primeira vista. Por trás da gramática esta a lógica e para além dela a vida. A palavra é um bem perigoso, porque dá testemunho da realidade. É tarefa vã, mas possível e tentadora agir sobre os termos para deteriorar os conceitos e desviar a inteligência e a memória das situações que lhes deram origem. Não se nos antolha coisa fácil modificar do pé para a mão todo um vocabulário que a filosofia e a vida cristã ergueram e fizeram petrificar lá onde mesmo o rosto se desviou; mas não se pode esperar que o homem humilde da rua vá à raiz da palavra beber a vida. Urge facilitar-lhe a tarefa, desimpedir-lhe o caminho.


Purificar os termos, restituir as festas ao seu significado, além de profunda tarefa cristã, é empreendimento de bem e de verdade Não chega acolher no íntimo Cristo, nem sequer homenageá-lo na intimidade do lar. É preciso dar-lhe lugar na vida, abrir-lhe caminho na rua, nestas ruas e caminhos onde ele também se cansou, não como nós nos cansamos dos homens, mas por autêntico e natural cansaço. O Natal não é mera questão de coração ou de sentimento, embora também o seja. Não se trata de um mero «símbolo eterno», como é possível se diga nos jornais e depois o leitor tome como verdade. Não se celebra uma cerimónia, nem tão-pouco se cumpre um simples ritual. Oxalá as crianças pudessem ver nas pessoas crescidas que hoje somos a certeza de um ideal vivido. Haveremos de brincar com as crianças?



Aí se anuncia o nascimento de Cristo, que encontrou um historiador probo e fiel em São Lucas, capaz de satisfazer os exegetas racionalistas do século passado. Festejar é repetir, reviver um acontecimento. Dá por vezes tristeza ver, entre outras coisas, que os cartões de boas-festas chegam a não conter a menor alusão ao Natal Em vez disso, trazem-nos as paisagens geladas do Norte que nenhum coração aquece, mostram-nos árvores que as nossas crianças nunca viram. Tudo isto por se imitar servilmente. Experimente alguém perguntar seja a quem to quem e esse pobre velho de barbas brancas à porta de certas lojas. Pobre Menino Jesus da minha infância! Que é feito desse antigo Natal português, cristão? António Feijó queixar-se-ia hoje desse «Domingo triste, protestante e frio», sentiria porventura saudades dos «Dias santos de sol católico-romanos» ?


Fazer ver estas coisas equivale, parece-nos a nós, a pôr os pontos nos ii. Urge, nestes tempos modernos, aproximar a vida da verdade. Chamar as coisas pelo seu nome é garantir às crianças, que nesta quadra nos olham mais nos olhos, um mundo de amanhã melhor. Temos de restituir as palavras às situações, as festas ao seu significado, as cerimónias ao verdadeiro sentido. O Natal é o Natal cristão. Não há outro. Onde não é Cristo que nasce, não há Natal. Pode a família reunir-se em volta do madeiro, rasparem as crianças o tacho onde se fez o arroz doce, encherem-se de brinquedos os sapatos na chaminé. Se Cristo não nasce, o Natal passará e nós continuaremos órfãos. Não nascemos de novo, porque não nasceu Cristo em nós, na nossa casa, entre a nossa família, na profissão, no trabalho.


Nesta altura, é também de uso aparecerem nos jornais eruditos senhores a discutir. Presépio ou árvore do Natal? — eis um dos temas obrigatórios de disputa. Ainda não há como as crianças para resolverem estes sisudos problemas. Experimentem perguntar-lhes. Responderão certamente: os dois. Ainda o ano passado, houve um desses senhores que sabem muito destas coisas que chamou ao presépio privilégio dos ricos. Talvez não o dissesse por mal, mas para escandalizar este ou aquele, ou para ter que dizer na altura de escrever o obrigatório artigo semanal. Para afirmar uma coisa destas, é preciso desconhecer a cristã origem do presépio. Introduziu-a santo não mais rico do que Francisco de Assis, no ano de 1223. Assim o relata Joannes Joergensen, ao dar-nos a conhecer as palavras com que o santo pobre exprimiu a sua resolução a João Veilita:

«Penso festejar contigo a santa noite de Natal, e ouve lá a ideia que eu tive: no bosque', perto do nosso eremitério, encontrarás uma gruta perdida entre os rochedos; instalas aí uma mangedoura cheia de feno, levas para lá um burro e uma vaca, para ser tudo exactamente como em Belém. Pois quero, ao menos uma vez festejar a sério a vinda do Filho de Deus à ferra e ver, com os meus próprios olhos, como ele quis ser pobre e miserável quando nasceu por amor de nós.»

Foi este o primeiro presépio.


O espírito do Natal é este. Se o vivermos assim, ou se pelo menos tivermos o desejo sincero de examinar a forma como o temos vivido, o Natal não passará em vão. Porque se Cristo nasceu sozinho, também nos não terá aproveitado ele ter nascido. E depois de termos nascido com ele, já não teremos olhos para as coisas deste mundo donde não somos, apesar de estarmos."

Ruy Belo , Obra Poética de Ruy Belo, Volume 3, Editorial Presença

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