sexta-feira, 21 de março de 2008

VISITAÇÕES (de) DA PAIXÃO I


VISITAÇÕES (DE) DA PAIXÃO I

Quarta-Feira , toda a família, mesmo a minha “Pipi das Trancinhas Largas”. O metro e a chegada às 20.30, adivinhando o que se seguiria, mesmo com vento cortante a valer a pena a quase hora de espera para a abertura da porta da belíssima Igreja de Nª Senhora da Conceição no Marquês. Entrada gratuita para ver(?) ouvir essa voz imaculada de Irmã Marie Keyrouz. Possuidor de vários discos da Harmonia Mundi desta figura tão despojada do canto religioso internacional, voz companheira de angústias, de intimas orações, nunca imaginei o que iria significar aquela hora e trinta de tumulto, pacificação interior.

E entrou o seu Emsemble de La Paix, nesta noite apenas vocal, para uma figura magra, esguia, frágil , vestida de forma simples , agradecer os primeiros aplausos. E tudo começou de forma mágica com o “ Quem é este Rei” , um canto de Tradição Maronita, para de seguida em mais doze cânticos de Tradição Bizantina, ou Melquita e um “encore” , a voz de Marie Keyrouz, literalmente encheu as naves e os corações presentes na Igreja do Marquês. De uma suavidade de gestos, de um olhar e corporalidade metafórica intensa, e com uma voz que ia dos registos mais baixos às sonoridades altas e etéreas das esferas, Irmã Marye, conseguiu a comunhão interior dos felizes contemplativos nos hinos orações entoadas, mesmo que a língua fosse imperceptível. Seria? A linguagem divina nunca é imperceptível, porque basta abrir o coração – tão simples como isso.

Com um coro maravilhoso no seu acompanhamento em bordão, os melismas, ou tropos de Marye Keyrouz, eram tão suave e fortemente entoados qual vozes da anunciação da Morte ou Ressurreição do Senhor. Não sei, talvez fosse assim a voz de Gabriel. Os ascendentes e descendentes da sua voz, partilhavam esse amor a Cristo, feito Homem, embebiam as palavras, fossem de deposição, de humildade, ou de ascensão, de júbilo. E uma voz indefinida, que tanto atingia alturas de soprano, tessituras de contralto, como, não raras vezes envereda por “mezzo” para descrever a pintura religiosa, o cântico que se pretendia transmitir. E a improvisação, muitas vezes presente, sempre a preceito, sempre humilima, sempre ao serviço de uma espiritualidade da palavra e da música.

Uma hora e meia, onde não houve nem longes nem distâncias, nem Ocidente nem Oriente, nem fariseu ou publicano,rico ou pobre, apenas uma voz onde nos finos e ténues fios da música se uniram religiões, mundos, pacificações. Que grande lição-momento de multiculturalidade, de História e interioridades! Não se ouvia “uma mosca”, o silêncio entrou pelas frestas do silêncio e nem pediu licença de instalação. Ouvia-se o respirar do companheiro (a) do lado, sentia-se em muita gente uma comoção fortíssima e um ir com a música nesse turbilhão de paz que inundava as naves do Templo. E o Senhor andou por ali, onde o quiséssemos sentir, ou nas notas saídas da boca de Keyrouz, ou naquele rochedo inamovível de cada um – A Fé! Um verdadeiro acto de Fé o canto de Marie Keyrouz! De Fé como vivência, como crença, como dádiva. Quem soube ouvir, abrir-se à oração , receber, fortaleceu-A. Uma mediurga do Senhor, Marie Keyrouz. Que força interior nesta Mulher, na sua fragilidade!

Não dissemos palavra, quando noite gélida saímos do Templo. A minha Trancinhas, não adormeceu e fartou-se de bater palmas. Os meus dois “ados” estavam entre o maravilhado, o siderado e o aparvalhado, com o que viram e ouviram. A minha T, ...bem, pelo canto do olho e da alma, fui assistindo algumas vezes à sua emoção, o que não me admira, porque não é só aquele “corpinho” que me atrai não, ao fim de quase vinte anos de “aturações” mútuas, digo, “aternurações” mútuas.

Um comentário:

Raul Martins disse...

E pensava eu que ia chegar a casa e me ia logo deitar para retemperar as forças de um dia bem passado com os meus. A tentação de te visitar foi pecado doce para a minha alma. Não conhecia esta belíssima voz! Quanta ignorância! E fui descobrir um pouco mais sobre ela na net. E mais não vou dizer que um simples obrigado pela tua presença e por me ires enriquecendo. E que continues, continuemos com as nossas caras metades e com os nossos filhos com essas

"aturações" e "aternurações":

simplesmente genial. Não só este bocado... todo o último parágrafo.

Diz à tua Matilde que a tradução está belíssima, mais um ponto para ela. Foi a Émy que o disse que eu, como bem intuíste, nada percebo de inglês... infelizmente.

E hoje vou dormir muito mais em paz!