Há História de e para
tudo ou quase tudo, vestuário, brinquedos, relógios, canetas, mobiliário e por aí
fora, todavia nunca vi ou pelo menos não conheço uma história curiosa: a das
pastas escolares!
Gostava de ver
sistematizado em respostas escritas ou visuais esta simples questão: como
transportavam os meninos de tempos idos, nem sequer muito longínquos, os seus
livros, cadernos, canetas, lápis, aparos, réguas e toda a panóplia de material
escolar que era preciso carregar diariamente para as Escolas Primárias, depois
para as Escolas Comerciais ou Industriais e Liceus? Bem, carregar todo todo,
não seria bem o caso pois algum era deixado na prateleira debaixo do tampo de
levantar da adorável carteira de escola tão caraterística até aos finais dos
anos 60.
Este vosso criado, nado em Massarelos, vivido na Sé do Porto, pode tentar dar uma ajuda a estas
questões, calcorreador sem medo que foi da Rua do Cativo, cativa
inclinada do imponente Teatro Nacional S. João até à Escola Primária nº 1 da
Sé, e depois já maratonista liceal de longa distância da Praça da Batalha,
Entre-Paredes ou Santo Ildefonso, Poveiros, Campo 24 de Agosto, Avenida Camilo,
até ao “licev” Alexandre Herculano, formidável e intimidante há altura, pequeno
de alojamento de ternura saudosa, hoje.
Sim, lembro-me como se
hoje fosse. Nos primeiros anos, nos inícios dos anos 60, existiam ainda os
célebres sacos de transporte de material escolar que o Manoel de Oliveira
imortalizou no Aniki Bóbó “Segue Sempre Por Bom Caminho”. Lembro-me de os ver
de cores e feitios variados – uns abertos, outros com botões, sim, botões de
fecho, outros com abas que passavam por cima do fecho, outros de fecho éclair,
uns de pano branco cru, outros de panos garridos ou de xadrez escocês, o mesmo
das saias das meninas, de algumas meninas do meu Porto, mesmo alguns de pano de
ganga “macaco”, igual ao fato de trabalho do Pai, mas os que mais me fascinavam
eram os sacos de sarapilheira feitos do aproveitamento dos sacos de batatas, de
fosfatos, ou mesmo de carvão. Alguns eram tão sacos, tão sacos que traziam o
carimbo azul ou verde-água da empresa de utilização.
Alguns destes sacos
podiam ser comprados nas lojas de retrosaria, de panos, ou mesmo em mercearias
como os cheguei a ver de garbo pendurados na do Senhor João da minha amada Rua
do Cativo. Mas os mais belos eram
aqueles sacos de escola finamente urdidos por costureiras e, em cada rua, em
cada canto, em cada viela da minha cidade havia uma de mãos habilidosas, ou
melhor, muito melhor, os sacos feitos por essas “Helenas” ou aranhas meticulosas
que eram as próprias mães. A delicadeza dos remates a agulha e dedal, o burilado
floral do bordado, ou mesmo o nome do filho impresso em algumas destas sacas,
era mariano, e só o podia ser. Algumas meninas até se davam ao luxo de terem
dentro outro saco igualmente bordado, este para o lanche, fosse naco de broa,
pão com manteiga ou marmelada.
Estes sacos de pano
eram na sua maioria “sacos de classe”, pois os usurários eram geralmente
meninos pobres. Sim, já havia pastas de pele de vaca curtida que chamávamos no
Porto de “celeiro”, todavia nas lojas de solas-cabedais, que apelidávamos de “soleiros”
as ditas eram a preços incomportáveis para carpinteiro, pedreiro, lojista ou
simples empregado de armazém como o era o meu pai. Assim nos meus seis anos
limitei-me a olhar para elas, não invejoso, mas mais surpreendido por sentir
que meninos iguais poderiam ter direito a coisas diferentes.
Confesso que a surpresa
não o era assim tanto, pois já o tinha sentido nas bolas de futebol-brincadeira
que nos enchia as medidas no Parque das Camélias, ou no distante Campo das Capelas.
Menino pobre não tinha dinheiro para bola de borracha, quanto mais para a de
couro, esta só sonhada através do cabrito, da cobaia e do bacalhau das
Victórias de caderneta completada a rebuçados e dentes e mau estado. Quando
muito uma bola de plástico da “Pepe”, ou outra marca, comprada na Casa dos
Plásticos “a vaquinha” de tostões de todos, uns de peditório para a cascata dos
Santos populares, outros de “fananço” ardiloso de porta-moedas materno ou paterno.
Bola plástica dura, dolorosa de vermelhão sanguessuga nas pernas de calções, ou
dedos dos pés descalços de menino de rua. Percebe-se agora porque menino da Sé
não queria ser guarda-redes!
Assim, habituei-me,
habituamo-nos meninos da Sé a fazer bolas de meia de vidro da mãe, ou de
qualquer meia que tivesse calcanhar em condições, com jornal de qualquer título
que não eramos esquisitos na edição.
Não, não tive um desses
sacos de pano. Menino pobre, era, mas como a avó paterna tinha uma pensão com a
minha mãe a viver de empréstimo na mesma, era considerado menos pobre, digamos
que para outros meninos de ternas brincadeiras da minha rua, eu era um “pensionista”,
o menino da pensão Flôr do Cativo. Já não ia para a Escola com roupa rota, mas
com roupa remendada. As mazelas em cotovelos ou joelhos eram remediadas por mãe
zelosa com cotoveleiras e joelheiras ovais de pele compradas na Casa Crocodilo
com o mesmo embalsamado e pendurado ainda ameaçador no teto da loja. Assim,
menino remendado, mas de pensão, uma espécie de estatuto que miúdo não senti,
mas que mais tarde me rebentou na alma como bomba-relógio: quando meninos nos
tornamos homens, não sei se fui eu que deles me afastei, ou o contrário. Sem
querer fiquei marcado em ferro em brasa na cotização dos afetos.
Nunca me passou pelos
ombros alça amorosa de saco de pano, mesmo quando criança muito pequena de “patronato”
dos Grilos, encostado à Igreja do mesmo nome. Assim também quando miúdo de
caminhada pela Rua do Sol para a Escola Primária nº1 da Sé.
Uns meses antes, no
final de Setembro tive direito à minha primeira pasta de escola. Sim, em
Setembro, porque os meninos dos inícios dos anos 60 eram felizes com a escola
retardada de abertura. Só abria o ano letivo por volta de 7 de Outubro, e assim
3 “mesinhos inteirinhos de feriazinhas” que para mim eram meses de Praia do
Molhe, Alpendurada, “toladas” no
Douro do Araínho, da “Praia dos Tesos”,
ou futeboladas de rua, Índios e Cowboys, Pião, Sameira, esconde-esconde, e
tantas e tantas brincadeiras de rua e de menino de pertença à mesma.
A minha primeira pasta
de escola. De cartão, como muitas malas de viagem de altura. Comprada na casa
das malas. Debruada a zinco e forrada a azul-floral, mas de cartão grosso.
Castanha, de percalina, como o eram forrados os livros de contas e blocos de
apontamentos variados, ou mesmo encapados alguns livros. Com uma alça de pele
para colocar no ombro, ou no caso de mais peso, para atravessar a tiracolo. No
2º Ano, a mãe mandou colocar umas alças para as costas para acomodar melhor o
peso e colocar debaixo da gabardina, caso chuva invasora ameaçasse o cartão.
Resistiu dois anos, mas tive outra igual que me acompanhou até à 4ª Classe.
Lá
dentro, um mundo: Livros cadernos, o meu estojo de madeira comprado com a minha
caneta de aparo na papelaria Lopes da Silva na Rua Chã, mesmo ao lado da
musical “Caius”, tudo o que um “menino de pensão” ainda podia aspirar na ascensão
da escala social, para ser diferente de outros meninos que não sendo de pensão,
ficaram degraus abaixo, muitos na miséria, na pobreza, na delinquência.
Olho a minha primeira
pasta e uma ternura enorme invade a minha nostalgia. Estou ali, falo-lhe, ela
dialoga nos sonhos que perdi, no menino que sendo-fui e que por arrebitado por
vezes me quer fugir. Promete guardar no seu azul floral as minhas memórias de
escola menino. Que passem como nuvem-aroma do menino de rua feliz que fui para
os meus.
“Gato-Vadio” de
telhado, chamou-me um dia a minha Mestra, a Manuela, talvez, talvez, mas se me
chamasse “Índio-Cowboy” do Cativo, também estava bem.
Se calhar continua...