segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

PASTAS ESCOLARES ...E MAIS

Para o Rui Santos e a Mónica e ...uma pasta!



Há História de e para tudo ou quase tudo, vestuário, brinquedos, relógios, canetas, mobiliário e por aí fora, todavia nunca vi ou pelo menos não conheço uma história curiosa: a das pastas escolares!

Gostava de ver sistematizado em respostas escritas ou visuais esta simples questão: como transportavam os meninos de tempos idos, nem sequer muito longínquos, os seus livros, cadernos, canetas, lápis, aparos, réguas e toda a panóplia de material escolar que era preciso carregar diariamente para as Escolas Primárias, depois para as Escolas Comerciais ou Industriais e Liceus? Bem, carregar todo todo, não seria bem o caso pois algum era deixado na prateleira debaixo do tampo de levantar da adorável carteira de escola tão caraterística até aos finais dos anos 60.

Este vosso criado, nado em Massarelos, vivido na Sé do Porto, pode tentar dar uma ajuda a estas questões, calcorreador sem medo que foi da Rua do Cativo, cativa inclinada do imponente Teatro Nacional S. João até à Escola Primária nº 1 da Sé, e depois já maratonista liceal de longa distância da Praça da Batalha, Entre-Paredes ou Santo Ildefonso, Poveiros, Campo 24 de Agosto, Avenida Camilo, até ao “licev” Alexandre Herculano, formidável e intimidante há altura, pequeno de alojamento de ternura saudosa, hoje.


Sim, lembro-me como se hoje fosse. Nos primeiros anos, nos inícios dos anos 60, existiam ainda os célebres sacos de transporte de material escolar que o Manoel de Oliveira imortalizou no Aniki Bóbó “Segue Sempre Por Bom Caminho”. Lembro-me de os ver de cores e feitios variados – uns abertos, outros com botões, sim, botões de fecho, outros com abas que passavam por cima do fecho, outros de fecho éclair, uns de pano branco cru, outros de panos garridos ou de xadrez escocês, o mesmo das saias das meninas, de algumas meninas do meu Porto, mesmo alguns de pano de ganga “macaco”, igual ao fato de trabalho do Pai, mas os que mais me fascinavam eram os sacos de sarapilheira feitos do aproveitamento dos sacos de batatas, de fosfatos, ou mesmo de carvão. Alguns eram tão sacos, tão sacos que traziam o carimbo azul ou verde-água da empresa de utilização.


Alguns destes sacos podiam ser comprados nas lojas de retrosaria, de panos, ou mesmo em mercearias como os cheguei a ver de garbo pendurados na do Senhor João da minha amada Rua do Cativo.  Mas os mais belos eram aqueles sacos de escola finamente urdidos por costureiras e, em cada rua, em cada canto, em cada viela da minha cidade havia uma de mãos habilidosas, ou melhor, muito melhor, os sacos feitos por essas “Helenas” ou aranhas meticulosas que eram as próprias mães. A delicadeza dos remates a agulha e dedal, o burilado floral do bordado, ou mesmo o nome do filho impresso em algumas destas sacas, era mariano, e só o podia ser. Algumas meninas até se davam ao luxo de terem dentro outro saco igualmente bordado, este para o lanche, fosse naco de broa, pão com manteiga ou marmelada.


Estes sacos de pano eram na sua maioria “sacos de classe”, pois os usurários eram geralmente meninos pobres. Sim, já havia pastas de pele de vaca curtida que chamávamos no Porto de “celeiro”, todavia nas lojas de solas-cabedais, que apelidávamos de “soleiros” as ditas eram a preços incomportáveis para carpinteiro, pedreiro, lojista ou simples empregado de armazém como o era o meu pai. Assim nos meus seis anos limitei-me a olhar para elas, não invejoso, mas mais surpreendido por sentir que meninos iguais poderiam ter direito a coisas diferentes.


Confesso que a surpresa não o era assim tanto, pois já o tinha sentido nas bolas de futebol-brincadeira que nos enchia as medidas no Parque das Camélias, ou no distante Campo das Capelas. Menino pobre não tinha dinheiro para bola de borracha, quanto mais para a de couro, esta só sonhada através do cabrito, da cobaia e do bacalhau das Victórias de caderneta completada a rebuçados e dentes e mau estado. Quando muito uma bola de plástico da “Pepe”, ou outra marca, comprada na Casa dos Plásticos “a vaquinha” de tostões de todos, uns de peditório para a cascata dos Santos populares, outros de “fananço” ardiloso de porta-moedas materno ou paterno. Bola plástica dura, dolorosa de vermelhão sanguessuga nas pernas de calções, ou dedos dos pés descalços de menino de rua. Percebe-se agora porque menino da Sé não queria ser guarda-redes!
 Assim, habituei-me, habituamo-nos meninos da Sé a fazer bolas de meia de vidro da mãe, ou de qualquer meia que tivesse calcanhar em condições, com jornal de qualquer título que não eramos esquisitos na edição.

Não, não tive um desses sacos de pano. Menino pobre, era, mas como a avó paterna tinha uma pensão com a minha mãe a viver de empréstimo na mesma, era considerado menos pobre, digamos que para outros meninos de ternas brincadeiras da minha rua, eu era um “pensionista”, o menino da pensão Flôr do Cativo. Já não ia para a Escola com roupa rota, mas com roupa remendada. As mazelas em cotovelos ou joelhos eram remediadas por mãe zelosa com cotoveleiras e joelheiras ovais de pele compradas na Casa Crocodilo com o mesmo embalsamado e pendurado ainda ameaçador no teto da loja. Assim, menino remendado, mas de pensão, uma espécie de estatuto que miúdo não senti, mas que mais tarde me rebentou na alma como bomba-relógio: quando meninos nos tornamos homens, não sei se fui eu que deles me afastei, ou o contrário. Sem querer fiquei marcado em ferro em brasa na cotização dos afetos.


Nunca me passou pelos ombros alça amorosa de saco de pano, mesmo quando criança muito pequena de “patronato” dos Grilos, encostado à Igreja do mesmo nome. Assim também quando miúdo de caminhada pela Rua do Sol para a Escola Primária nº1  da Sé.
Uns meses antes, no final de Setembro tive direito à minha primeira pasta de escola. Sim, em Setembro, porque os meninos dos inícios dos anos 60 eram felizes com a escola retardada de abertura. Só abria o ano letivo por volta de 7 de Outubro, e assim 3 “mesinhos inteirinhos de feriazinhas” que para mim eram meses de Praia do Molhe, Alpendurada, “toladas”  no Douro  do Araínho, da “Praia dos Tesos”, ou futeboladas de rua, Índios e Cowboys, Pião, Sameira, esconde-esconde, e tantas e tantas brincadeiras de rua e de menino de pertença à mesma.





A minha primeira pasta de escola. De cartão, como muitas malas de viagem de altura. Comprada na casa das malas. Debruada a zinco e forrada a azul-floral, mas de cartão grosso. Castanha, de percalina, como o eram forrados os livros de contas e blocos de apontamentos variados, ou mesmo encapados alguns livros. Com uma alça de pele para colocar no ombro, ou no caso de mais peso, para atravessar a tiracolo. No 2º Ano, a mãe mandou colocar umas alças para as costas para acomodar melhor o peso e colocar debaixo da gabardina, caso chuva invasora ameaçasse o cartão. Resistiu dois anos, mas tive outra igual que me acompanhou até à 4ª Classe. 

 

Lá dentro, um mundo: Livros cadernos, o meu estojo de madeira comprado com a minha caneta de aparo na papelaria Lopes da Silva na Rua Chã, mesmo ao lado da musical “Caius”, tudo o que um “menino de pensão” ainda podia aspirar na ascensão da escala social, para ser diferente de outros meninos que não sendo de pensão, ficaram degraus abaixo, muitos na miséria, na pobreza, na delinquência.

 


Olho a minha primeira pasta e uma ternura enorme invade a minha nostalgia. Estou ali, falo-lhe, ela dialoga nos sonhos que perdi, no menino que sendo-fui e que por arrebitado por vezes me quer fugir. Promete guardar no seu azul floral as minhas memórias de escola menino. Que passem como nuvem-aroma do menino de rua feliz que fui para os meus. 

 


 

“Gato-Vadio” de telhado, chamou-me um dia a minha Mestra, a Manuela, talvez, talvez, mas se me chamasse “Índio-Cowboy” do Cativo, também estava bem.

Se calhar continua...










segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Maré Baixa



Irreprimível vontade de.... Contido dique de represada tristeza . Um estado de chuva fria, molhada, enervante humidade gota a gota cá dentro mesmo em tarde soalheira de outono. 



As minhas raízes mais profundas desvanecendo-se, os meus troncos primitivos de vida afilando-se cada vez mais numa curvatura para a terra com que se misturarão.



A inevitabilidade do tempo no seu sem dó nem piedade no cinzelar de almas e corpos. O maço e cinzel a fazer mossa na estatuária de um fim que ainda há-de ser. Sei, pressinto-o, embora em mim o seu martelado vá só a meio. Neles, passa a vibração do som, o ritmo acelerado de ter de ser, a sensação estranha de obra quase acabada.



Dói. Dói-me tudo numa lassidão trespasse de perda que ainda não o é. Não sei porquê, lembro-me do Broch da "Morte de Vergílio" e do "Em Nome da Terra" do outro Vergílio. Talvez as reflexões agudas, profundas, dolorosamente verdadeiras sobre a velhice, talvez. 



O meu velho e orgulhoso faroleiro cada vez menos garboso, cada vez menos clamando aos ventos da vida, cada vez mais dobrando-se pelos joelhos evitando a queda inevitável.


Para ali, numa miserável cama, de uma miserável enfermaria boca de um soturno e esconso corredor de um hospital portuense. Viajante que sempre foi, agora para ali a vida a querer "agarajá-lo" de força de vontade, de farolice. Um misto de raiva e tristeza a fazer ninho cá dentro.

A minha uterina barca - a Mãe. Cada vez mais a perder o rumo, o sentido de bolinar da vida. Vai navegando já com nenhuma memória de partida, pouca de balanço de viagem ainda a cumprir, aguardando uma chegada ainda de tempo indeterminado. Olha, compreende no seu parecer de não compreender. Por vezes distante, longe, viajante de terras de  um mundo que não alcanço ou sequer sonho. Dói, dói-me muito perceber que talvez não viaje para o que poderia ainda descobrir, ou o que de bom ainda pode ter a navegação, mas para o que perdeu na descoberta.

Sinto uma tristeza infinda nos seus olhos, ilhas de poucos, muitos poucos pássaros nas suas pupilas, ausculto-lhe nos seus passos e gestos lentos, vontade de demoras para a nossa felicidade e nem sequer me comovo, porque esvaído de dor fico.

Ontem vi-lhe a trémula mão pegar na dele, tímida, namoradeira quase, e ele aceitá-la a fazer-se de distraído de mais de 50 anos. Vi-a em bicos de pés, em esforço denodado a debruçar-se na barra da cama para um beijo na cara em barba de vários dias. Sorriu ligeiramente do bálsamo do companheirismo.

No lúgubre corredor, com a T ao meu lado tive vergonha. A mais de meio da viagem, percebi que não percebo nada do Amor, mesmo nada do Amor, da humanidade secreta, fascinante e incompreensível do Amor.
 Sonho impossível de regresso fascinado ao meu ser menino deles como verdade inquestionável de ser verdade simples e pura. Mas,como Os amo...meu Deus! No princípio foram Eles.




segunda-feira, 30 de setembro de 2013

PORQUE SIM, QUERIDA LOCATÁRIA






Não. Não é dia de nada. Nem de aniversário, nem do nosso primeiro casamento, nem do segundo nosso casamento, nem de nada só para não esquecermos que existimos. Apenas na leitura deste poema de Vasco de Miranda a visita de uma intrusa de muitos anos alojada sem pagar renda num apartamento que só eu sei.

Não será normal num blogue, parecerá até estranho, senão mesmo "affettuoso com molto", mas paciência. Aparições solares de fim de tarde que suavizam o cinzento do dia.

Neste fim de tarde chuvoso, feio, tristonho, no aconchego da confeitaria de quase esquina que amamos enquanto lia o poeta que sabes e me acompanha vai para meses, resolveste entrar resteazinha de sol em imaginação e em silêncio sorriste enquanto a caneta de tinta permanente rabiscava a verde esmeralda estas frases. No fim, também em imaginação regressaste aos teus meninos, à tua profissão de fé de Educadora. Pareceu-me ouvir as suas vozes doces de poça de maré:   
"Texa...Texa, foste ao mar ou vieste do mar?"




Vieste com rosto de virgem georgiana

Trazida nos ventos que o mar soprou

Vieste na Lua nas pedras nos dentes brancos

Das crianças e no arco

Do sonho que a distância não matou

Vieste na ilha de fogo destes e mil versos

Criados para dar-te corpo - forma humana

Vieste na fome dos meus olhos

Nos dedos da miséria e nas gaivotas

Emergindo do rio

Onde o Sol se purificou
  

Vasco Miranda