domingo, 13 de janeiro de 2013

"ANJO EMPRESTADO" - Cristina Magalhães


























Cristina Magalhães. É minha colega na Escola. Professora de Português. Tinha uma ideia vaga da colega num programa de TV que vislumbrei no tic-tac do zapping, outra colega alertou-me para o livro. Comprei-o, li de assentada, depois outra e outra vez repisei algumas passagens.

 
Dizer o quê? Lembro-me de uma divertida introdução de Vernon Sproxton a um livro que muito amo "Mister God, This is Anna" de Fynn, em que ele divide os livros em três categorias: os Bons, os Indiferentes e os Maus, todavia, inventa uma categoria nova que apelida de "Livros Ah!", os quais entre outras vantagens dão a impressão de criar novos horizontes, novos sentidos de respiração, em vez de os encerrar, de os regularizar.

 
Talvez o livro da Cristina seja isso, um livro "Ah!", ou talvez não, não sei. Sei que não é um livro de planura, de lugar-comum, embora o seja de uma caminhada entre alturas quase vertiginosas e planícies desconcertantes em que por vezes não se descortina o fim. Um livro de plenitude de procura, de questionamento, de perdição para o encontro.

 
Um livro belíssimo? Nem a isso sei responder. Um livro com uma humanidade em gente que mais que comover, cria raízes, cria portos de valer a pena. E não é fácil lê-lo, apesar da escrita, essa sim, de grande beleza formal, da autora. Apenas um livro tão, tão poderoso, que só pode ter sido escrito pela força remanescente da fragilidade que talvez seja essa que salve.

 
Na dor mais magoada e profunda quase mineralógica, nunca um copo pode ficar meio cheio ou meio vazio. Há que bebe-lo até á evaporação da última gota que nem sequer nos consegue chegar aos lábios para sempre insaciados. Talvez a Cristina tivesse de escrever este livro, talvez por terapia, por testemunho, ou talvez por nada disto, talvez Ela como Mãe fosse inscrita pela palavra que como muito bem afirma, nem precisa de ser dita para "carregar o dia" ( Eugénio).

 
O que a Cristina escreve, para mim "É", foi, e a tal palavra escrita andou no seu mistério de inscrição a bailar cá dentro, sem meças pedir, com a força agreste dolorosa do grito incontido, mas também o sopro leve, etéreo ligeiramente ensolarado da esperança pena leve que nos acaricia. Por vezes, em determinadas passagens, aragem aresta cortante que me feria, como noutras, poente caloroso de fim de tarde que me serenou. No fim, uma paz enorme, uma ternura imensa de valer a pena andar por cá, de perceber que em mares revoltos, muitas vezes um pequeno grande escaler que é o Amor - salva.

 
Não, não vou dizer que percebi isto ou aquilo, porque o caminho entre a "imaginação de" e a realidade sentida é quase sideral. Posso dizer que ao lê-la imaginei algumas vezes o seu Golghota doloroso, a sua luta pessoal, o seu Getsêmani que jardim não foi, como noutras pressenti uma música quase adagio molto affettuoso de uma melodia belíssima que é o Diogo e o Diogo é Lindo. Não sei.

 
Sei que ao findar a leitura do seu livro instintivamente lembrei-me do início de um poema de Nuno Higino: "As mães sobem uma escada até ao céu,/sobem e descem a escada longa dos filhos;/as mães olham para cima, firmam as mãos na escada/e pensam com os olhos./Ficam de pé-morrem de pé/se for preciso-a pensar nas estrelas. (...) "

 
Recebi este livro no horizonte recolhido de mim, porque a Cristina o deu de mãos abertas de Humanidade. Talvez egoísta da minha parte, mas lê-lo, deu-me uma tranquilidade de maré vaza, que bem vou precisando neste ligeiro plano inclinado que quero continuar a percorrer em serenidade. Na última página, aquela sensação de perceber que vale a pena andar aqui, que ainda me falta tanto para "ser humano em gente", para me convencer que os caminhos D´ Ele são mesmo ínvios por mais que os tentemos transformar em retas.

 
O Título do livro é sublime e dolorosamente belo, compreendo-o, mas depois de chegar ao fim do livro, instintivamente pressenti um Quarteto..."Anjos Entrelaçados" e não explico porquê, porque só  lendo.

 
Depois estas minhas palavras aninhadas (nem sequer poema) para este Quarteto :


Anjos,
Inomináveis serespalavras
aves migratórias que partindo ficam
qual o sentido das aves?
Encosto o ouvido ao chão
Pressinto o peso invisível das asas
Intacto o mistério.                                                                               ( AV)






quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

LÊDO IVO




Morreu Lêdo Ivo. Foi no dia 23 de Dezembro em Espanha. Tinha 88 anos. Morreu um Poeta imenso da grandiosa literatura brasileira. O costume português: aqui e ali um notícia quase escondida num ou noutro jornal, um quase alheamento generalizado dos blogues, as TV mais interessadas nos seus "degredos caseiros" , telenovelas,  "onze contra onze", cozinha esfomeada "Michelin", ou manhãs para velhinhos ou velhinhos amanhecidos, nada de coisa nenhuma.  



Acendi uma vela a Lêdo Ivo, como sempre o faço cá em casa quando morre um Poeta. Amado cá da Tribo, conhecido pela sua poesia e, ironia das ironias, a sua obra a ser neste momento objeto de trabalho de Mestrado por parte da minha filha mais velha, Lêdo Ivo teve uma entrada tardia na minha biblioteca que não no meu conhecimento de alguns dos seus belíssimos poemas.



Na estante, praticamente a única obra do Poeta publicada em Portugal com data de Maio de 2012 (!!)  "Antologia Poética"com apresentação e selecção de Albano Martins, das Edições Afrontamento, que foi pelos meus tribalistas sorvida a golos cálidos e saborosos.

A mim, não chegou. Uma antologia é uma antologia ao gosto de quem escolhe, mesmo sendo um grande poeta português a ter o gosto de escolher,  por isso, a necessidade de passar quase duas semanas com as quase 1100 páginas da sua "Poesia Completa 1940-2004" da Braskem – Topbooks.



E, nada que a antologia não me tivesse sussurrado: dos maiores poetas de língua portuguesa do século XX-XXI, na mesma galeria onde assentam arraiais um Oswald de Andrade. Drummond, Bandeira, Cecília, Mário de Andrade, Mário Quintana, Murilo Mendes, Vinicius, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Manoel de Barros, Nejar, e... e...



Sobre a sua poesia não me interessa teorizar neste momento. Adoro o seu humor fino, o estilo irónico e cáustico, a crítica social e política por inteira e revestido de fina inteligência sensível e poética, a sua profunda metafísica trazida pela alquimia da palavra poética a uma simplicidade desarmante, mas sobretudo, amo em Lêdo Ivo, na sua poesia, essa imensa maré de ternura que a invade, um gosto pelo mel essencial da vida que nos obriga a vivê-la por vivida.



Morreu Lêdo Ivo, mas parece-me estar a vê-lo neste preciso momento nas escadas do poema. Respira cansado de quase nonagenário, silencioso (ele que adorava falar, conversar) mas de sorriso rasgado, olha-me nas entrelinhas da sua "Eternidade Premeditada":



A ETERNIDADE PREMEDITADA


Isto será a eternidade:

um incessante subir de escadas.

E sempre estarás no começo da escadaria

muito embora todos os dias sejam degraus.

Deus, porque fizeste a eternidade?

Porque nos obrigas a subir tantas escadas?


Mas podia pegar nesta maravilha de poema e dedicá-lo com todo o carinho e afago possível a esse retardado mental e amorfo cultural que nos desfinancia, só mudando o título de magnata para o óbvio do cargo:


A UM MAGNATA

   
Faça amor de dia.

 Guarde a noite para

dormir e sonhar.

Faça a rosa espessa
 fremir no mormaço
le o poço secreto

Ícobrir-se de orvalho.

Fature milhões

sem sair de um quarto:

os milhões da vida

que os bancos não guardam.

 Não se desperdice

 cativo ao trabalho.

 Lembre-se: suor

 mole em vida dura

 cava sepultura.

  Rompa com o seu sócio

  e jogue na cesta

  as letras de câmbio.

  Cultive o seu ócio

  e beije, na sombra,

  o pistilo ardente

  da rosa em sigilo.

  Se quer evitar

  o câncer e o enfarte,

  siga o meu conselho:

  não se mate no

  trabalho ou negócio.

  Arranje uma dona.

  Um pregão na Bolsa

 não vale o sussurro

de uma namorada.

Se quer lucro certo

invista no amor.

Mas - meu bom calhorda! -

não cometa excessos.

Matéria de sexo

requer parcimônia.

A poupança é tudo.

Com a bem-amada

faça o amor correio

(papai-e-mamãe,

mamãe-e-papai)

como antigamente

nos tempos das valsas

e dos candelabros

quando não havia

sequestros de jatos

e de diplomatas.

Ah! Ditosos tempos

sem Freud e sem Marx.

Os computadores?

São uns mentirosos.

Produtividade?

Não creia em lorotas.

Não perca o seu tempo.

E ar refrigerado

Só dá resfriado...

Não caia no conto

da tecnologia.

Fuja desta lepra

chamada dinheiro

que só dá prejuízo

e aborrecimentos.

Seja um homem prático.

Faça amor de dia.


Como podia dedicar este a um papagaio de corda e ossudo cerebral que só sabe repetir " Ai-Aguentam, Aguentam!"




O BANQUEIRO


 Pensa o banqueiro

 na catedral

 ao dar seu óbulo

 dominical:

 "Quem dá a Deus

 empresta aos pobres".


Como podia dedicar aos que prezam a vida, o sonho, aos que se dedicam a essa beleza comovente que enfarta os nossos olhos mas que recusamos ver por medo de cegueira, quando nem nos apercebemos que cegos vamos estando. 




   MINHA PÁTRIA


Minha pátria não é a língua portuguesa.

Nenhuma língua é a pátria.

Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci

e o vento que sopra em Maceió.

São os caranguejos que correm na lama dos mangues

e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés

                                       '[quando sonho.



Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas

                                                  [carcomidas,

os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar,

e o céu encurvado pelas constelações.

Minha pátria são os apitos dos navios

e o farol no alto da colina.

Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa.

São os estaleiros apodrecidos

e os cemitérios marinhos onde os meus ancestrais tuberculosos

                                 [e impaludados não param de

                                 [tossir e tremer nas noites frias

e o cheiro de açúcar nos armazéns portuários

e as tainhas que se debatem nas redes dos pescadores

e as résteas de cebola enrodilhadas na treva

e a chuva que caí sobre os currais de peixe.

A língua de que me utilizo não é e nunca íoi a minha pátria.

Nenhuma língua enganosa é a pátria.

Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e

                                     [pobre pátria muda,

minha pátria dísentérica e desdentada, sem gramática

                                       [e sem dicionário,

minha pátria sem língua e sem palavras.





OS POEMAS


 É meu corpo que escreve os meus poemas.

  Minha alma é a sucursal de minha mão.

 As palavras me buscam no silêncio.

Palavras são estrelas que reclamam

 o papel branco: céu, constelação.




AMOR


Pouso a minha mão

na tua espádua:

e a noite se muda

em alvorada.

No mar passam navios

vagabundos:

haverei de levar-te

ao fim do mundo.

Um pássaro canta

seu canto de pássaro.

E dia ou é noite?

Jamais saberemos.

Luz e sombra unidas

na eterna aliança.



O TRABALHADOR

    
Sofrido e mal pago
 assim vou e venho
 entre lusco e fusco.
 Pelo meu trabalho
 só recebo vento,
 salário de sal.
 Minha mão estendo
 para a luz do dia
 que me fere os olhos.
E nada recolho
que tudo é ilusão
de espuma entre abrolhos.
Na trilha do dia
vou de parceria
com a escuridão.
 



 
CONDIÇÃO PARA ACEITAR

       
Que a morte me lembre

 um mar transparente,

 só assim a aceito:

 silêncio final

 dentro de meu peito,

 perfeição de vagas

  brancas e caladas,

  paisagem abolida

  no horizonte raso

  do mar sem coqueiros,

  vazio do mundo

  após a palavra

   que quis dizer tudo

   e não disse nada.