Morreu Lêdo Ivo. Foi no dia 23 de
Dezembro em Espanha. Tinha 88 anos. Morreu um Poeta imenso da grandiosa
literatura brasileira. O costume português: aqui e ali um notícia quase
escondida num ou noutro jornal, um quase alheamento generalizado dos blogues,
as TV mais interessadas nos seus "degredos caseiros" , telenovelas, "onze contra onze", cozinha esfomeada "Michelin",
ou manhãs para velhinhos ou velhinhos amanhecidos, nada de coisa nenhuma.
Acendi uma vela a Lêdo Ivo, como
sempre o faço cá em casa quando morre um Poeta. Amado cá da Tribo, conhecido
pela sua poesia e, ironia das ironias, a sua obra a ser neste momento objeto de
trabalho de Mestrado por parte da minha filha mais velha, Lêdo Ivo teve uma
entrada tardia na minha biblioteca que não no meu conhecimento de alguns dos
seus belíssimos poemas.
Na estante, praticamente a única
obra do Poeta publicada em Portugal com data de Maio de 2012 (!!) "Antologia Poética"com apresentação e
selecção de Albano Martins, das Edições Afrontamento, que foi pelos meus
tribalistas sorvida a golos cálidos e saborosos.
A mim, não chegou. Uma antologia
é uma antologia ao gosto de quem escolhe, mesmo sendo um grande poeta português
a ter o gosto de escolher, por isso, a
necessidade de passar quase duas semanas com as quase 1100 páginas da sua "Poesia
Completa 1940-2004" da Braskem – Topbooks.
E, nada que a antologia não me
tivesse sussurrado: dos maiores poetas de língua portuguesa do século XX-XXI,
na mesma galeria onde assentam arraiais um Oswald de Andrade. Drummond, Bandeira,
Cecília, Mário de Andrade, Mário Quintana, Murilo Mendes, Vinicius, João Cabral
de Melo Neto, Ferreira Gullar, Manoel de Barros, Nejar, e... e...
Sobre a sua poesia não me
interessa teorizar neste momento. Adoro o seu humor fino, o estilo irónico e cáustico,
a crítica social e política por inteira e revestido de fina inteligência
sensível e poética, a sua profunda metafísica trazida pela alquimia da palavra
poética a uma simplicidade desarmante, mas sobretudo, amo em Lêdo Ivo, na sua
poesia, essa imensa maré de ternura que a invade, um gosto pelo mel essencial
da vida que nos obriga a vivê-la por vivida.
Morreu Lêdo Ivo, mas parece-me
estar a vê-lo neste preciso momento nas escadas do poema. Respira cansado de
quase nonagenário, silencioso (ele que adorava falar, conversar) mas de sorriso
rasgado, olha-me nas entrelinhas da sua "Eternidade Premeditada":
A ETERNIDADE PREMEDITADA
Isto será a eternidade:
um incessante subir de escadas.
E sempre estarás no começo da escadaria
muito embora todos os dias sejam degraus.
Deus, porque fizeste a eternidade?
Porque nos obrigas a subir tantas escadas?
Mas podia pegar nesta maravilha de poema e dedicá-lo com todo o carinho e afago possível a esse retardado mental e amorfo cultural que nos desfinancia, só mudando o título de magnata para o óbvio do cargo:
A UM MAGNATA
Faça amor de dia.
Guarde a noite
para
dormir e sonhar.
Faça a rosa
espessa
fremir no mormaço
le o poço secreto
Ícobrir-se de
orvalho.
Fature milhões
sem sair de um quarto:
os milhões da vida
que os bancos não
guardam.
Não se desperdice
cativo ao
trabalho.
Lembre-se: suor
mole em vida dura
cava sepultura.
Rompa com o seu
sócio
e jogue na cesta
as letras de
câmbio.
Cultive o seu
ócio
e beije, na
sombra,
o pistilo ardente
da rosa em
sigilo.
Se quer evitar
o câncer e o
enfarte,
siga o meu
conselho:
não se mate no
trabalho ou
negócio.
Arranje uma dona.
Um pregão na
Bolsa
não vale o
sussurro
de uma namorada.
Se quer lucro certo
invista no amor.
Mas - meu bom calhorda! -
não cometa excessos.
Matéria de sexo
requer parcimônia.
A poupança é tudo.
Com a bem-amada
faça o amor correio
(papai-e-mamãe,
mamãe-e-papai)
como antigamente
nos tempos das valsas
e dos candelabros
quando não havia
sequestros de jatos
e de diplomatas.
Ah! Ditosos tempos
sem Freud e sem Marx.
Os computadores?
São uns mentirosos.
Produtividade?
Não creia em lorotas.
Não perca o seu tempo.
E ar refrigerado
Só dá resfriado...
Não caia no conto
da tecnologia.
Fuja desta lepra
chamada dinheiro
que só dá prejuízo
e aborrecimentos.
Seja um homem prático.
Faça amor de dia.
Como podia dedicar este a um papagaio de corda e ossudo cerebral que só sabe repetir " Ai-Aguentam, Aguentam!"
O BANQUEIRO
Pensa o banqueiro
na catedral
ao dar seu óbulo
dominical:
"Quem dá a Deus
empresta aos
pobres".
Como podia dedicar aos que prezam a vida, o sonho, aos que se dedicam a essa beleza comovente que enfarta os nossos olhos mas que recusamos ver por medo de cegueira, quando nem nos apercebemos que cegos vamos estando.
MINHA PÁTRIA
Minha pátria não é a língua portuguesa.
Nenhuma língua é a pátria.
Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em Maceió.
São os caranguejos que correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés
'[quando
sonho.
Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas
[carcomidas,
os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar,
e o céu encurvado pelas constelações.
Minha pátria são os apitos dos navios
e o farol no alto da colina.
Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa.
São os estaleiros apodrecidos
e os cemitérios marinhos onde os meus ancestrais
tuberculosos
[e impaludados
não param de
[tossir e
tremer nas noites frias
e o cheiro de açúcar nos armazéns portuários
e as tainhas que se debatem nas redes dos pescadores
e as résteas de cebola enrodilhadas na treva
e a chuva que caí sobre os currais de peixe.
A língua de que me utilizo não é e nunca íoi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa é a pátria.
Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e
[pobre
pátria muda,
minha pátria dísentérica e desdentada, sem gramática
[e sem
dicionário,
minha pátria sem língua e sem palavras.
OS POEMAS
É meu corpo que
escreve os meus poemas.
Minha alma é a sucursal de minha mão.
As palavras me buscam
no silêncio.
Palavras são estrelas que reclamam
o papel branco: céu,
constelação.
AMOR
Pouso a minha mão
na tua espádua:
e a noite se muda
em alvorada.
No mar passam navios
vagabundos:
haverei de levar-te
ao fim do mundo.
Um pássaro canta
seu canto de pássaro.
E dia ou é noite?
Jamais saberemos.
Luz e sombra unidas
na eterna aliança.
O TRABALHADOR
Sofrido e mal pago
assim vou e venho
entre lusco e
fusco.
Pelo meu trabalho
só recebo vento,
salário de sal.
Minha mão estendo
para a luz do dia
que me fere os
olhos.
E nada recolho
que tudo é ilusão
de espuma entre abrolhos.
Na trilha do dia
vou de parceria
com a escuridão.
CONDIÇÃO PARA ACEITAR
Que a morte me
lembre
um mar
transparente,
só assim a
aceito:
silêncio final
dentro de meu
peito,
perfeição de vagas
brancas e
caladas,
paisagem
abolida
no horizonte
raso
do mar sem
coqueiros,
vazio do mundo
após a palavra
que quis dizer
tudo
e não disse
nada.
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