quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

FIM DE UM...COMEÇO DE UM OUTRO

Not in the mood:

Sobretudo homenagem a sublime escritor, dos maiores que a nossa literatura conheceu e cujos Conta-Corrente fui revisitando nesta tarde feia e chuvosa. Vergílio a obrigar-me a refluir à minha humanidade profunda neste final de ano.


“Hoje iremos festejar o Ano Novo a casa dos Paixões. Seremos fúteis e magníficos. Faremos talvez um manguito monumental ao ano que findou, desejaremos felicidades uns aos outros, comeremos, beberemos, fumaremos charutos havanos que me ofereceram há tempos e eu levo daqui, e recolheremos enfim à cama, acordando amanhã não num novo recomeço mas na continuação do esgotamento do que se nos vai esgotando. Depois os dias somar-se-ão aos dias, e os meses aos meses. E quando mal nos precatarmos estaremos, se estivermos, num outro fim de ano. Haverá mais migas no nosso rosto, as crianças terão crescido um tanto, o nosso irmão corpo ter-nos-á dado mais avisos de que vão sendo horas de fechar as contas, a indiferença crescerá em nós como erva com os silêncios entre ela, e o nosso olhar será mais apagado sobre as coisas. Celebraremos então um novo fim de ano, faremos talvez um outro gesto com o braço para ele. E teremos talvez mostrado assim exemplarmente aos moralistas e aos enérgicos exaltadores da vida que o grande comentário para tudo isto, num filosofar sintético e visível, é esse manguito demorado e do tamanho do Universo.”

“ Hoje é o último dia do ano e há que vir aqui portanto assinar o ponto. Só mesmo por isso venho. Porque de facto, que tenho eu a dizer? Olho atrás o ano que passou e é como se já tivesse passado antes de passar. Tudo corre rapidamente semuma pausa que se demore. Pensei e penso que isso se deve à compressão do tempo pela idade, porque só quando se é jovem o tempo dura o tempo que é ou às vezes mais. Na velhice o tempo reduz-se, porque antecipadamente sabemos que nada há nele que passar. Pensei e penso isso, mas não é essa a razão bastante. Vive-se hoje no provisório, o instante vive o passado e o futuro, sem se intensificar a si na dimensão da eternidade. E assim espantoso o gasto enorme que de tudo fazemos para imediatamente o deitar fora. A sociedade de consumo não se fixou apenas no desbarato da frivolidade exterior, mas contaminou a nossa vivência interior.É fabuloso assim a quantidade de coisas que exaltamos até ao delírio para logo as esquecermos. (...)
Hoje acaba mais um ano, um novo ano vai começar. E só o que me apetece dizer é que não sei que dizer nem pensar. Já não falo da política por uma regra de higiene. Mas ela também não é culpada, porque sem os homens que a fazem, outros a fariam plausível. Ela é todavia o mais repulsivo do que repelimos, porque mais visível e imediata e tangível ao que em nós toca o circunstante. Houvesse ao menos por detrás ou por dentro disso tudo o que regrável e compreensível e alto nos sublimasse e redimisse. Não há. Há só a confusão e o desvairamento, as explosões súbitas de gritos que logo se apagam e esquecem. Cultura do esquecer, do sucessivo e casual, do berro que tenta afirmar-se até à rouquidão e o silêncio subsequente, da ausência da- memória que tem sido a mãe das artes e afinal da própria cultura. Calo-me eu também no esgotamento de o dizer. Hoje é o último dia do ano. Mas podia ser o primeiro, que é amanhã, ou o segundo, que é depois. Porque todos os dias são últimos no silencio que vem logo atrás.”


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