Vejo na SIC a inefável Inês Pedrosa, directora da casa Fernando Pessoa ou lá o que é, e rio à gargalhada. Que não conhecia, que foi ver uns poemazinhos , mas que a tradução isto e aquilo, e a conversa a desviar para o Nobel literário ser mais "homenzarrão" do que feminino e isto e aquilo. Lembrei-me do "porque não te calas", mas também do provérbio chinês "Sabes porque é que o bombo faz tanto barulho? - porque é OCO". Para que vai uma pseudo-intelectual a uma TV falar do que não conhece, não sabe, nem sonhava que existia? Não bastava o "pivot"? Era preciso o "pechisbeque intelectualeiro" para dar encenação à cena? Bolas! Já não bastava o translúcido Viegas a secretariar?
Pois bastava à dita cuja ter um pequeno e belíssimo livro que qualquer biblioteca mediana de poesia deveria ter, para fazer vistaço. "21 Poetas Suecos" da Vega, com traduções chanceladas e magníficas de Almeida Faria, Ana Hatherly, Casimiro de Brito, Teresa Salema e Vasco de Graça Moura.
Sim, um extraordinário poeta, que devido a este livro comecei a seguir em inglês e francês, principalmente através dos paperback da Bloodaxe, ou da Castor. Poeta da concisão, sim, mas também do fôlego e do fulgor que só um fractal de momento pode trazer. Lembrei-me da Gabriela LLansol - um poeta de cenas fulgor. Um poeta luminoso de sombra, das grandes paisagens e metrópoles, reduzidas a um dentro contar-se. Um poeta de fina ironia recusa do lugar comum, de "resistência" pelo belo da palavra.
9 poemas desse livro:
As pedras As pedras que lançámos, ouço-as
cair claras como o vidro pêlos anos fora. No vale
voam agitados os gestos do momento
gritando de copa para copa, calando-se
ao fino ar desse momento, deslizando
como andorinhas de cume para cume até alcançarem
os planaltos extremos
ao longo da fronteira da existência. Aí caem
claros como o vidro
os nossos actos
ao encontro apenas do chão
que nós próprios somos.
( trad: Teresa Salema)
Kyrie
A minha vida às vezes abria os olhos no escuro.
Uma sensação de multidões arrastando-se por ruas,
cegas e sem descanço, no caminho para um milagre,
enquanto eu fico aqui, invisível.
Como uma criança que adormece aterrorizada
à escuta dos passos pesados do coração,
até que a manhã ponha o seu raio de luz nos fechos
e as portas da escuridão se abram.
(V.G.M.)
Aquele que acordou com o canto sobre os telhados
Manhã, chuva de Maio. A cidade está calma
como uma cabana. Ruas tranquilas. No céu
troa azul-verde um motor de avião—a janela está aberta.
O sonho onde se dorme de membros estendidos
torna-se transparente. Move-se, tateia
pêlos instrumentos da visão — quase no espaço.
(T.S.)
Lisboa
No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam [nas calçadas íngremes.
Havia lá duas cadeias. Uma era para ladrões.
Acenavam através das grades.
Gritavam que lhes tirassem o retrato.
«Mas aqui», disse o condutor e riu à socapa como se
[cortado ao meio,
«aqui estão políticos». Vi a fachada, a fachada, a fachada
e lá no cimo um homem à janela,
tinha um óculo e olhava para o mar.
Roupa branca no azul. Os muros quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde perguntei a uma senhora de Lisboa:
«será verdade ou só um sonho meu?»
(V.G.M.)
Allegro
Toco Haydn depois de um dia sombrio
e sinto um calor simples nas mãos
Há um querer nas teclas. Brandos martelos batem.
O som é verde, tranquilo e animado.
O som afirma que a liberdade existe
e que alguém não paga a César os impostos
Enfio as mãos nas minhas algibeiras de Haydn
imito alguém a olhar o mundo calmamente.
Iço a bandeira de Haydn — quer dizer:
Nós cá não nos rendemos. Mas queremos paz.
A música é uma casa de vidro no declive
por onde pedras voam, pedras rolam.
E as pedras atravessam as vidraças
mas cada vidro vai ficando intacto. (V.G.M.)
Quando a neve derreteu 66
Queda precipício de água ruído velha hipnose.
O rio inunda o cemitério de automóveis, brilha atrás das máscaras.
Seguro-me ao parapeito da ponte.
A ponte: um grande pássaro de ferro que veleja
[pela morte.
(T.S.)
O casal
Apagam a luz e o vidro branco da lâmpada cintila
um momento até se dissolver
como uma aspirina num copo de breu. Então elevam-se.
As paredes do hotel deslizam para o céu escuro.
Os gestos de amor esbateram-se e eles dormem
mas os seus pensamentos mais secretos encontram-se
como duas cores que se encontram e penetram
no papel molhado de um desenho infantil.
Está calmo e escuro. Mas esta noite a cidade
aproximou-se. Com janelas apagadas. As casas vieram.
Uma multidão de rosto inexpressivo
mantém suspensa a sua vigilância.
(T.S.)
Montes negros
Na curva seguinte saltou da sombra fria da montanha
o focinho virou contra o sol e rugindo rastejou para cima,
íamos apertados no autocarro. Também lá estava o busto
[do ditador
envolto em papel de jornal. De boca para boca ia uma
[garrafa.
O sinal de morte crescia em todos a diferentes
[velocidades.
No cimo das montanhas o mar azul agarrou-se ao céu.
(A.F.)
Citoyens
Na noite depois do acidente sonhei com um homem
[bexigoso
que caminhava nas vielas cantando.
Danton!
Não o outro — Robespierre não faz passeios desses,
Robespierre faz a sua meticulosa toilette uma hora
cada manhã. O resto do dia devota-o ao Povo.
No paraíso dos panfletos, entre as máquinas da virtude.
Danton —
ou aquele que trazia a sua máscara —
parecia alçado em andas.
Vi a sua face desde baixo.
Lua bexigosa, metade luz, metade luto.
Eu queria dizer qualquer coisa. Um peso no peito, peso
que faz avançar os relógios,
rodar os ponteiros: ano 1, ano 2...
Um cheiro intenso como serradura na jaula dos tigres.
E—como sempre no sonho—nenhum sol.
Mas os muros brilhavam
nas vielas que viravam
descendo para a sala de espera, a sala curva,
a sala de espera onde todos nós...
(A.F.)
PS. Pode ser que para o ano ganhe o maravilhoso Sándor Kányádi, e talvez um inefável MST, ou um qualquer Arouca, ou mesmo uma alforreca MRP, estejam numa TV perto de si num plano aplainado a "arrotar" pescadinhas fritas à la nobel!
Como sinto falta de vós Pacheco e Cesariny!