Marcou tão profundamente a minha vida e o meu gosto musical. Com o pouco dinheiro que conseguia ainda estudante universitário e depois professor de cueiros, lá ia mensalmente pela escadaria do Mundo Da Canção (MC) à cata dos LP da Das Altewerk - Telefunken do tal senhor que me emocionou até quase às lágrimas quando pela primeira vez ouvi um adágio de Bach tocado num cravo de som mágico e de forma tão etérea, tão subtil, tão natural que aquilo não era instrumento, mas voz divina.
GUSTAV LEONHARDT acaba de falecer, e a minha tristeza impregna ruas de fundo. Não bastava a Montsserat Figueras vai para poucos meses e agora o Mestre, aquele para quem a música barroca parece ter sido companheira de viagem contínua. Ouvir Gustav Leonhardt pela primeira vez, foi apaixonar-me pelo toque mágico deste encantador das “cordas beliscadas”, pelo dedilhar mais natural que encontrei num cravista, por esta água cascata fluente que saía das suas interpretações. O seu Bach, não é “vintage”, é, será para sempre um monumento à arte e ao génio do velho mestre. Mais tarde ouvi grandes cravistas como Curtis, Moroney, Gilbert, Hantai, Baumont, Ross, Staeir etc, etc, mas retorno sempre, mas sempre com alegria renovada a esse Bach apolíneo, prodigioso de equilíbrio, de “tempi” certo, tão longe de muitos barroquistas idiotas adeptos do barroco formula 1, dos tempos “Lagardére”, dos tais esfuziantes sons que mais do que respeito de uma obra, mais não são do que fogos fátuos de uma sensibilidade musical que vai faltando.
Depois, foi seguir o Mestre através de outras gravações, muitas vezes já não como solista, mas como maestro desses prodigiosos Leonhardt- Consort ou Collegium Musicum, ou da Petite Band, ou mesmo do Tolzer Knabenchor. Bach da Paixão Segundo S. Mateus BWV 244, com La Petite Band, o mesmo Bach da Missa BWV 232 com a mesma La Petite Bande, são para mim inigualáveis, pela justeza de…TUDO! A Edição completa das Cantatas de Bach com o companheiro Harnoncourt ainda hoje são minha companhia habitual, apesar de possuir as edições completas do Rilling, do Pieter Jean Leusink, ou as quase completas do Richter, ou do Masaaki Suzuky. Precursor de muita coisa que não me interessa referir, Leonhardt foi um artista inolvidável, um homem íntegro e sobretudo de uma humildade grandiosa, de uma forma de estar na vida e no mundo ao serviço da beleza, da música e das obras. O seu cunho pessoal de intérprete ou maestro nunca procurou o estrelato, a fama parola, o espetáculo gratuito, o primeiro eu, depois a obra ou o compositor. Estudioso maravilhoso, pensador profundo, exegeta e esteta, Gustav Leonhardt acabou por uma ponte, um caminho, uma ligação àquilo que verdadeiramente interessa – a Música.
Adoro o Biber, Rameau, o Purcell e Kuhnau de Leonhardt, o Leonhardt ator no filme de Jean Marie Straub “ Chronik der Anna Magdalena Bach”, os órgão holandeses tocados pelo mestre, e sobretudo, um disco que oiço neste momento. Uma emoção profunda toma-me de assalto quando ouço esse canto pungente, doloroso, sem ser adocicado, esse fluir natural de sons saídos não do cravo, mas da alma do instrumento que só dedos, cérebro e coração com ela poderiam dialogar. Ouço Tombeau faict à Paris sur la mort de Monsieur Blancrocher de Johannn Jakob Froberger e uma, duas, três lágrimas furtivas assomam à janela. Que voem pela música, por GUSTAV LEONHARDT.
Soube agora.
Há grande agitação e alegria nos céus. Os Querubins rejubilam com o novo cravista. Meus queridos amigos, JOHANN SEBASTIAN BACH sorriu-lhe como só o velho Bach sabia sorrir, e com piscadela de olho de grande cumplicidade deu-lhe a entender: GUSTAV, escolhe como acolhimento: ou tocas as Goldberg, ou o Cravo Bem Temperado!
LEONHARDT, sorriu, ajeitou madeixa rebelde de cabelo branco e começou a tocar a Allemande da Suite Nº 1 em Ré Menor, BWV 812 das Franzosische Suiten. JOHANN deu uma gargalhada, levantou a mão e nos céus fez-se silêncio hálito das estátuas .