sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Porto Menino de Ternas Brincadeiras

















O Pião
Estava assim, que se lhe havia de fazer? Única e irrepetível, a infância de cada um, trampolim do que se é para o que se vai ser, sem nunca deixar de ser o que se foi. Sentia cada vez mais esses momentos de maré-alta a ancorar nele e isso era bom! Da sua infância a aprendizagem da relatividade do que se sabe ou conhece, a recusa do monolitismo interior, a saudade de um tempo real, concreto, que se vai esvaindo, substituído cada vez mais pela virtualidade do tempo, a realidade corpórea dos objectos substituída pela imagem imposta deles, a pureza aqualina das sensações, pela impostura dos sentidos. Brincadeiras de Rua…sim!

A………..anda co…mer! Ouvia o grito voz potente de soprano da mãe a chamá-lo para o almoço ou jantar, aviso da chegada do pai. Distinta a sua voz, apesar de muitas vezes outras maternais vozes rivalizarem com a sua, fossem sopranos , mezzos , ou contraltos. As vozes das mães das ruas do Porto, inconfundíveis! Gritos de ternura, ralho, aflição, mas aconchego quente de toque a recolher! Bastava um grito-chamada de uma e o milagre polifónico acontecia…em espaço de minutos as chamadas repetiam-se. Mas como obedecer, se a sua equipa de menino estava a perder, se a “sameira” estava perto da meta, se a mão certeira daquele dia virava “Vitórias” como quem água-bebe? Brincadeira de menino é coisa séria! Sabia que o inevitável chinelo de pneu, faria o seu safado trabalho, sabia que lá viria a maternal e estafada promessa do logo ou amanhã, não sairia, mas também sabia que, no castigo, muita promessa de mãe não se cumpria! Brincadeiras de rua sim! Por épocas, a maior parte das vezes. A época do pião era intocável, sagrada. Era pião, era pião! Havia no menino de rua do Porto, o respeito devido ao pião de época, jamais ao puto “morcão” que aparecesse com o pião fora de época. O merceeiro João, os soleiros da Rua Cimo da Vila, os comerciantes de ferragens das ruas das Flores, ou do Mouzinho, esforçavam-se por mostrar a sua mercadoria e, gabar a qualidade dos seus piões. Mas menino de rua do Porto sabia a qualidade de pião, ai se sabia! Um ano ou outro, em assembleia magna, lá se decidia que os piões de um lojista eram uma miséria e, boicote aos mesmos! Piões não eram iguais, não senhor! Pareciam iguais, mas não eram! Uns…eram uns “panascas” delambidos, sem garbo no girar, outros de bico rombo, nem giravam, maneavam-se bêbados. O que os esperava era ter uma vida curta. A condenação da miudagem era terrível! Iriam servir de piascas, suprema degradação de um pião! Amochar no centro de um círculo, e levar “quecas e mais quecas”, até serem atingidos na zona vital e racharem ao meio! As piascas também se compravam, mas para poupar o pião “olhinhos da nossa cara”! Quando era a vez do desgraçado amochar, lá ia a piasca para o castigo. Durou pouco este hábito, porque meninos de rua em assembleia da mesma, decidiram eliminar substitutos. Menino que era homem “tinha-os no sítio” e punha o seu belo pião à sorte da pontaria e engenho dos outros! Com que olhos sôfregos e argutos menino de rua do Porto pesquisava os piões nas lojas! Um, dois, cinco, dez em cima do balcão…olhos gulosos no verniz, no bico…e os “pulhas” uma tentação! Desespero do lojista…”rais partam a canalhada, mer…, decidam-se! Julgam que não tenho mais nada que fazer?” Vontade de roubá-los…arriscado! Por fim, aquele luzidio, pouco envernizado, sem rastos de veios na madeira, fatal para um pião e, sobretudo de bico afilado, “ponta-de-lança”. Tinha de ser um pião “ponta-de-lança”! A faniqueira de fio de estore era à parte e ao metro, embora houvesse “artistas” que preferiam corda da cordoaria de Mouzinho da Silveira. O dinheiro, ou tinha sido surripiado do porta-moedas da mãe, ou fruto da transacção de “Vitórias” ou cromos de futebol, quando não o era, para risada geral, do aldrabanço de algum “camelo da mamã” da escola primária. O pião comprado, o pião na mão. O senti-lo, acariciá-lo, sentir-lhe o bico frio, mortífero, as primeiras experiências na terra ou no cimento da rua, a verificação dos buracos em ambos os terrenos para nos certificarmos da esperteza da escolha, que não havia trocas e, prontos para o “quem vai à guerra dá e leva”! O tempo, impiedoso para os piões, mesmo os melhores! No centro do círculo, durante horas eram massacrados com “quecas” terríveis que lhes iam desfigurando a face bojuda primeiro, o corpo esguio depois! Por vezes, nos olhos dos meninos de rua que tinham o seu pião no “mocho” liam-se pensamentos: “vais falhar filho da pu…!” Falha cabrão”! Mas muitas vezes não falhavam, porque havia Grandes-Mestres do Pião, que certeiramente lhe iam tirando meses de vida em tortura lenta. Não por caridade, mas por falta de dinheiro, aos primeiros sinais de velhice, acudia-se ao desgraçado, pintando-o de uma cor ou de várias, mas aquilo era pintura de esconder mazela e, no próximo encontro no terreiro, ao fim de uma hora, até metia dó olhar para ele! Truques para lhe prolongar a vida, menino de rua do Porto sabia muitos, mas a sua morte próxima era inexorável! A parte de cima era cravejada de “punaises”, carapaça amortecedora da violência dos bicos, o bico era afiado em parede de granito ou com lima de ferro, debalde, o tempo e as agruras da vida tinham-lhe traçado o destino…ou o lixo, ou a rachadela libertadora da agonia! Ninguém guardava pião de um ano para o outro, ninguém! Quem guardava pião, só podia jogar “à menina, em lançamento por baixo”! Os meninos de rua do Porto jogavam à “homem”! Mão bem levantada no ar, grito de guerra “ lá vai aço!” e…zás, com estrépito batia no concorrente ou ao lado, mas mesmo aí, eram suficientemente lestos para o enganchar na palma da mão a rodopiar e ainda ir “molhar a sopa” no pião que no chão, depois do primeiro embate, julgava ter escapado de boa! Raramente se falhava, raramente um pião girava de “cu para o ar”, vergonha suprema de um verdadeiro lançador! Fosse a variante do pião amochado a girar, ou imóvel, era com gana, com ardor que se procurava atirar o peão concorrente para fora do círculo, sob pena de quem não o conseguisse ir para o castigo. Meninos de rua do Porto, meninos de pião e faniqueira, iguais nas vergonhas e alegrias. Cada marca-mossa nos piões era sinal de derrotas ou vitórias, mas ao mesmo tempo de se pertencer a uma rua, a um grupo, a uma irmandade. Mesmo no momento supremo que era o do “escacar” de um pião, terrível, pelo vexame do desgraçado dono, durante dois ou três dias, sabia-se que chegaria a vez de cada um. O lançamento, a “queca” no sítio mais sensível -o encaixe do bico, o som abafado de algo a rachar, a madeira a partir-se ao meio e o bico de rosca sem pudor, à mostra, nu, como o metalúrgico o pôs no mundo! Era o afogueamento, ou a cor do branco das paredes, para o infeliz dono, a humilhação suprema de um menino, acentuada pelos gritos de alegria e gozo dos outros que acentuavam ainda mais a ignomínia! Chorava-se de vergonha, de raiva, mas dois ou três dias depois, saboreávamos o lado dos vencedores!

Outras brincadeiras de rua sim! Como chegava, a época do pião partia mansamente, sem alarido, mas logo outra brincadeira se impunha, ligada ás férias, à Volta a Portugal em Bicicleta. Era uma época que eram duas: as das “sameiras-caricas” e as das bicicletas em arame. Mas isso…
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