quarta-feira, 26 de março de 2008

Na Minha Escola Eu Tenho...

Este texto dedicado à colega e mãe Isabela Afra , no juntar às suas interrogações, algumas minhas, com inspiração no mote de um belíssimo poema de Drummond.

Vou contar um segredo...

Eu tenho uma árvore na minha escola. Na minha escola eu tenho uma árvore. É simples, pobre, frágil, mas eu tenho uma árvore na minha escola.

A minha escola tem dezenas de árvores, mas eu tenho esta árvore na minha escola.

Não lhe sei a espécie arbórea , mas sei o nome que lhe dei por baptismo : “ Pathosonírica”, mas por mútuo acordo, não posso revelar as razões deste estranho nome. Ela aprovou, pareceu-lhe clássico e misterioso ao mesmo tempo.

Não sei bem ao certo quando começou, talvez três quatro anos atrás, mas sei como começou: numa tarde quente de cansaço do falabaratar e entristecer naquilo a que chamamos a nossa sala, a necessidade de fuga, de espaço de respiração mais amplo, mesmo murado em quatro paredes. Há dias assim.

E reparei nela. Nem sequer foi amor à primeira vista. Foi um encontro casual, seguido de outros encontros confirmação, para se tornar numa espécie de cumplicidade, de afagos de silêncio. O meu estar no meu silêncio na complacência do silêncio dela. Nunca me exigiu nada em troca do marulhar das suas jovens folhas em brisa leve, da sua sombra, do canto de algum pássaro mais arisco nos seua ramos. Fui ficando no seu deixar-me ficar. A ternura foi nascendo, subtil, clara, adágio molto.

No início um ou outro colega de Educação Física, alunos e alguns funcionários estranharam, depois entranharam. Na sua estrazenha perceberam que eu tinha uma árvore na minha escola. Creditação de algum prestígio acumulado de quase quinze anos na minha escola, evitou certamente a ideia de insanidade mental. A “boa ideia”, “tá-se bem, Prof”, de alguns comentários, sucedeu-se a normalidade de uma a duas vezes por semana, ser normal um determinado professor ter a sua árvore, ou talvez a poética de uma determinada árvore ter direito a um professor.

E no dom de uma árvore acolher um professor, está o encosto ao seu frágil tronco, o sombreá-lo em dia de sol intenso, assistir à sua prostração na tristeza da neutralidade de alguns dias, ou simplesmente deixá-lo sonhar olhando nuvens marotas,brancas, abstractas ou figurativas, a brincar naquele mar de cima.

A minha árvore, miradouro previligiado d’Eles, mesmo sem subir aos seus ramos. As suas brincadeiras, as suas aproximações, os seus contactos desajeitados uns, timidos outros, alguns brutos, mas tão bons e diferentes dos virtuais e teclados, a tudo olhei silenciosa e compreensivamente. E os seus ser “Undertakers” e John Cena” e “Batista” e as aplicações perigosas por ingénuas de “spears”, de “shokeslam” na caixa de saltos em areia no campo de jogos, os seus imaginários Bryant, Pierce ou Ray Allen, da sua imaginária NBA nos cestos rotos do mesmo campo, os seus quererem terem pés à Cristiano Ronaldo, ou toque de magia à Ronaldinho, nos seus maneios de dança de Cristina Aguilera, ou Shakira, D’ Zrt ou Just Girls, a tudo eu e a minha árvore fomos assistindo, piscando-nos o olho de quando em vez.

Mas fomos também estristecendo com a tristeza de alguns que sozinhos pareciam carregar todo o peso da diferença e da condenação de não serem ou puderem igualar os seus pares. Marcados, pela simples razão de serem “desmarcados”, por não possuirem as “Van”, ou as “All Stars”, ou “Gola”, ou “Timberland”, ou porque se era “gordéfia” ,“baleia” , “tótó”, “beto”, ou não serem autorizados pelos pais ao “anilhamento” de brinco ou piercing, ou simplesmente porque aos olhos do espelho da turba-grupo não se é abençoado pela graça dos deuses no corpo ou beleza premeditada e imposta por quem não de direito. Por vezes humilhados, enxotados, quase empurrados desde o início do campo de jogos até perto da minha árvore, quase “animais escorraçados”, e muitas vezes num desespero, numa dor interminável , explodirem em lágrimas que teimosamente procuravam conter.

Aqui e ali, medições de força, ao jogo de quem empurra mais forte-ganha, ou ao jogo do “meco”, incompreensível até eu o compreender, com que alguns “heróis” mimoseavam algumas raparigas, que junto à rede terminal das balizas, eram bombardeavas com boladas de couro chutadas com toda a violência no intuito de lhes acertar e, algumas acertavam, magoando-as, mas elas não fugiam, nem pareciam amofinar-se muito, mesmo que o seu esgar de dor mostrasse que tinha doído. Um sorriso inconsciente e um “estúpido “ muito ao de leve, mostravam que os “heróis” lhes ligavam, que eram preferidas, que alguém lhes dignava uma atenção, mesmo pela dor. O prelúdio do “célebre” e miserável “quanto mais me bates mais gosto de ti”. Ali, numa conversa com uma minha aluna, a confissão cruciante que a primeira coisa que fazia quando acordava era ver se tinha mensagens no telemóvel . E mesmo tendo: “ Então vaca dormiste bem?”, isso era sinal que alguém se tinha lembrado dela.

Aqui e ali, mas muito raramente, umas mãos dadas, um afago, uma festa, o beijo dado na hora, o namorar. E namora-se tão pouco na minha escola, nos bancos da minha escola , à sombra das árvores da minha escola! E isso seria tão bom para a disciplina, e para acalmar hormonas e sentimentos de desafecto, perda e raiva. Pouco, muito pouco, mais em horda, em grupos alargados e barulhentos, onde se berra, onde pouco se diz, onde o pudor de um olhar, a disponibilidade de um ouvir, se diluem em gritarias histéricas, em gritos infantis, em onomatopeias e abreviações que escondem um não saber vocabular de comunicar, quando não pobreza afectiva dolorosa. E até parecem felizes

Gabinete de trabalho também,muitas vezes em tempo bom, o meu local de Coordenação , da papelada mais ou menos burocrática, de trabalho mais ou menos curricular, de reflexão na minha sempre (in)constante formação profissional. De tecnologia mais ou menos avançada, de dossiê mais ou menos maçudo, mas sempre com gigabytes de melodias de Bach, Coltrane, Drake, Tabor, Loreena, Sill, Innocence Mission, and so on. Um dia coloquei-lhe o phone do meu creative no esguio tronco, abanou os ramos num sussurro, não sei se cócegas, se aprovação pelo “Els Ulls” da Ariana Savall. Tudo suporta a minha árvore que tenho na escola.

Eu tenho uma árvore na minha escola. Na minha escola eu tenho uma árvore.

Mas não sou invejoso nem ciumento. Tempos houve que de bom grado aceitei a sua infidelidade, o seu alheamento de mim. Por vezes nos tais dias e horas de encontro, traiu-me com outros, fossem alunos solitários de sofrimento, fossem casais apaixonados em beijos sôfregos adolescentes, ou risos francos e gaiatos da miudagem apardalada misturados à revoada da passarada que a ela se acolhia.

Agora, infelizmente para os dois, muito mais fiel , mas também mais sós. Não que a minha árvore não continue sedutora, mas agora pouca visitação tem e quase nenhuma observação d’Eles consigo. Agora os poucos beijos são fugidios de intervalo, as solidões esparramam-se por paredes, corredores e cantos de portas de salas de aulas, o tempo dos afectos, do olhar, do silêncio, do ouvir, de deitar para fora angústias, tristezas, cansaços, pede meças ao tempo, porque não há tempo. Vive-se nos intervalos do tempo, ama-se, afecta-se no tempo dos intervalos , que são tempos intervalares de quase nada.

Como se não bastasse para os rebentos o familiar e amoroso tocar piano, o falar francês, que agora é inglês, o ballet, o desporto, tiraram-lhes quase tudo, com escolas com espaços feios até dizer basta, com 15 disciplinas no 3º ciclo, com trabalhos de casa sem nexo, com as inefáveis e safardanas aulas de substituição, e preparam-se para as actividades extra-curriculares. Dizem que é escola a tempo inteiro. Será! Será? Será de panela de pressão até rebentar, será uma escola a preparar-se para o grau zero dos afectos. Ocupação máxima para pensamento mínimo, estourá-los pela exaustão, amansá-los pelo espartilho do saber compartimentado, pelo crescer acrítico, pela não cultura, pelo triste do “tê-los ocupados –podemos estar descansados”. Não se educa pela ocupação, educa-se pelo coração.

O que daí virá, o tempo se encarregará de demonstrar. Talvez...talvez num tempo imediato, a indisciplina e e os focos dela, mesmo a violência, a crescer como cogumelos, a desmotivação e o cansaço a invadir corpos e corações, as soluções sejam tecnológicas, policiais, tribunalícias, a esvair-se no próprio complexo de serem soluções. Num tempo futuro, talvez aquilo que quase sempre fomos: um país tristonho, arredio de futuros, adiado consecutivamente, de costumes brandos e calaceiros. E vamos admirar-nos? Afinal o que vamos dando a esta miudagem? Que temos para lhes mostrar que os apaixone tanto? Muitos de nós damos-lhes precisamente aquilo em que eles se revêem: a irracionalidade, o juízo fácil, o egoísmo mais larvar, o objectivo do objecto, a vida gelatinosa que escolhemos.

Mas isto são pensamentos que vou confidenciando à minha árvore, porque :

Eu tenho uma árvore na minha escola. Na minha escola eu tenho uma árvore.

E recentemente andamos tristes, eu e ela. Pelo que escrevi e porque não encontramos respostas para tanta solidão. Antes das férias da Páscoa e durante uma hora entre reuniões, perguntou-me porquê e não lhe soube responder. Fartou-se de rir quando tentei ser poético e lhe respondi que muitos políticos, alguns pais e professores, não conseguem ser” Homens que têm árvores na cabeça” , mas lá me desmascarou dizendo-me que aquilo não era meu. Confessei-lhe que não, que tinha sido surripiado a um livro que os meus filhos adoram do Jorge Letria. Quis saber a História e eu que não, que a reunião do CEF, aproximava-se, e ela que abreviasse , e eu abreviei. Ela adorou. Depois despedimo-nos, não sem antes na fresca brisa da tarde a ter ouvido sussurrar : Existente Instante, o problemas deles não é ter uma árvore na cabeça, é... não terem raízes no coração.

Sorri-lhe e alguma coisa se prendeu em mim. Não sei se no coração, se nos olhos.

Já agora. Isto é um segredo. Não vá num futuro próximo algum inspector querer ser convidado a inspeccionar o meu “gabinete de trabalho”. Ali só teria para lhe presentear a minha “arfólio” – Phatosonírica, e não sei se ela estaria muito interessada nisso, e se ele não me mandaria por antecipação para o quadro de mobilidade especial, porque:

Eu tenho uma árvore na minha escola. Na minha escola eu tenho uma árvore.

Existente Instante

6 comentários:

Raul Martins disse...

Olá companheiro!
Bonito texto. Fez-me lembrar o Meu Pé de Laranja Lima e do Zézé. Também tenho um nome para a tua árvore: A Árvore dos Afetos... com as raízes bem agarradas ao coração como ela te disse.

Continua amigo trovador.

Raul Martins disse...

Árvore dos afectos... deve ser do acordo ortográfico!

Teresa Martinho Marques disse...

Pois... eu cá fiquei aqui com as raízes todas entrelaçadas, tipo teia de madeira, nas tuas palavras.
Ela, a tua árvore, tem razão.. e mais: não só lhes faltam as raízes, como a sabedoria para as tecerem... Abraço

isabela disse...

O seu texto é muito bonito, muito sentido…
Por momentos também me lembrei do zézé e do sapo cururu…

Passo anos a ensinar aos meus alunos que “ver não é só olhar”, mas é sentir, é compreender, é ver com olhos de ver, é ver com o coração, com a cabeça e com os sentidos todos…

E é esse ver, esse olhar, que nos conta no seu texto, de quem sente e compreende o que está à sua volta, que se transforma em Conhecimento e numa maneira de Estar por Inteiro.

Transcrevo esta frase cúmplice, da sua “Pathosonírica”:
…” o problemas deles não é ter uma árvore na cabeça, é... não terem raízes no coração.”

E com afecto, gostaria de lhe agradecer a dedicatória que me fez, assim:
“Sorri-lhe e alguma coisa se prendeu em mim. Não sei se no coração, se nos olhos.”

Gostei muito. Muito obrigada.

BC disse...

E já que de afectos se trata, também eu com os meus afectos,gostei da sua árvore verde,que existe na sua escola,para além de precisarmos de muitas mais árvores assim.
Inevitavelmente não posso deixar de salientar o facto do texto ter
sido dedicado á Isabela.
De uma distribuidora de afectos e sorrisos...
Um abraço
BC

Anônimo disse...

Comovente tocante e especial.