A aula acontece. Salvo erro foi Sebastião da Gama que escreveu isto no seu Diário e, tenho para mim, quer na minha experiência de quase trinta anos de Professor, quer na dos Grandes Professores que tive, que essa é uma verdade. Ainda poderei por em dúvida se as grandes aulas que tive ( e lembro-me delas ainda hoje, porque será?), eram mesmo de acontecer, mas que um milagre acontecia nelas, disso não duvido. Mas afinal que milagre era esse? Simples: o Professor deixava a aula acontecer. Havia um qualquer pretexto, um qualquer desencadeador da acendalha, um fractal momentâneo e eles captavam-no para afagar a crina do cavalo à solta e a aula ia por aí fora, por vezes num riso delirante, num fascínio de contador de histórias à ancião em gruta pré-histórica, ou mesmo num humor sem freio, quando não um discorrer fora da “matéria” , como gavião em altitude andina.
Nunca mais hei-de esquecer esses Professores que deixavam a aula acontecer! Os meus olhos fascinavam-se tanto , mas tanto, que olhando para eles me esquecia deles e partia à desfilada, no dorso das palavras deles, no encantamento do verbo d’eles.
E todos eles com a mesma característica. Apaixonados, terrivelmente e irremediavelmente Professores, pela força telúrica, pela transfiguração que impunham ao que diziam, ao saber que propunham transmitir, pela reflexão que procuravam induzir, pelo humor franco, límpido, mesmo quando picaresco, ou irónico. Depois outra coisa comum em todos: raramente se sentavam e sobretudo uma coisa fascinante falavam com o corpo todo, com uma expressividade que ia do olhar, das mãos, à forma como se deslocavam. Os grandes Professores que eu tive eram especialistas em expressão, em dança corporal, em oratória, mas especialistas naturais, porque hoje sei-o hoje, essa naturalidade advinha de uma qualquer ânsia interior, de vontade de compartilhar paixões e emoções. E vi Professores emocionados, na minha vida de aluno. Mais ainda...a voz, essa voz que passava de maviosa a trunitronante, de amorosa a ríspida, de desalentada a esperançosa, num ápice intersticial da leitura de um texto, de um comentário, na análise de uma personagem. Todos os meus Grandes Professores, independentemente dos decibéis, tinham uma voz expressiva, cantabile, cativante, estilo à molto e solto vocce!
Assim, em muitíssimas aulas desses meus Professores, o tédio andava arredio, e se espreitava, era nuvem de pouca dura, porque a paixão do tema, a piada a preceito, a chamada de atenção com categoria irónica, recolocava solarenga a “lição” no seu devido lugar.
Incomoda-me imenso a expressão que sistematicamente vou ouvindo dos nossos alunos, mesmo aqueles que são bons, que as “aulas são uma seca”. Mas as aulas têm de ser todas interessantes e atraentes? Claro que não, mas porquê serem com os mesmos docentes “serem uma seca?”. Cobaias para a experiência? Os meus próprios familiares, sejam filhos, sobrinhos, excelentes, bons ou médios alunos.
“ Experimenta estares 90 minutos praticamente a ouvir ler o livro e a fzer sublinhados no mesmo”. “ Sabes o que é ter um Professor sempre com a mesma voz durante toda a aula, chata, aborrecida, parece que a aula nunca mais acaba”. Imaginas ter que escrever no Caderno Diário, o mesmo que está no Manual, depois de a Professora ter dito o que no manual está, e ainda por cima sobre Geologia, na sala de Geologia com milhares de rochas nas vitrinas?!”. “Sabes lá o que é a tortura de ouvir ler Lusíadas de uma forma que aquilo parecia um funeral! ”E só poder dar aquela interpretação, porque se apresentamos outra, rodeiam,rodeiam, tentando dar-nos a volta?!”.
“E uma aula só com cálculos e números no quadro escritos pela Professora sem direito a questões e quando feitas o olhar a fuzilar-te, por as fazeres? Parece que queria mostrar que sabia fazer, Pai!”. “Imaginas acetatos e mais acetatos, para passarmos os acetatos?”. E Power Point, só com texto, por animar e com o que está no manual,até as gravuras?”. Ó tio, parecem “monos”, sentam-se e aí vai disto...falam, falam, que até quase que adormeço.Depois gritam que isto e aquilo, que estamos distraídos, que não participamos. E quando participamos, somos desordenados, se não participamos, que isso conta para a nossa avaliação. O que é participar, Tio?”.
Enfim , desabafos que vou ouvindo e, inacreditavelmente fazem-me lembrar os mesmos sentimentos que perpassavam o meu espírito em muitas aulas de meus Professores ( Não os Grandes) do Alexandre Herculano, somado a lembranças de intempéries de mau génio, de gratuitidade de tratamento, de desprezo absoluto, que ia do insulto fácil do “asno, ao burro”, passando pelo estúpido, do “não haveis de ser ninguém” , do riso cínico na entrega do teste negativo, até ao “atiranço” à cabeça do Dicionário, a canada indiana, ou o “puxanço de pavilhão auricular até ao chão com unhas de rapina, por vezes até sangrar, só por não saber uma Ópera de Donizetti, o celebérrimo castigo à “Pinóquio”. E os ataques de histeria do “Rapa”? E as intermináveis aulas de leitura linha por linha, vírgula por vírgula, do manual do Fins do Lago, que tornavam a História das disciplinas mais desérticas, secas e exaustivas que se possa imaginar, principalmente na voz terrivelmente monocórdicas de um “Fortes”. E as aulas entre o “tralharouco” e livresco-sonolento de um “Roda-Vinte-e-Quatro” ?
Claro, que alguns colegas mais púdicos, podem não estar a gostar, principalmente de forem adeptos de uns “modernaços” que chamo os “Facultés” ou “Universités” escolares, ou seja, indivíduos que não sabem o que é uma escola, uma aula, o ser professor do ensino básico, um miúdo do século XXI , ou que o são mas, que gostavam de chegar a “Facultés” e não conseguiram, e atacam em toda a linha a “modernidade “ educativa, propondo em troca uma revisitação ao passado , a métodos e hábitos do passado, quase numa fossilização, numa cristalização de ideias e ideais que magoa as inteligências. Depois falam culturalmente, e falam bem , numa espécie de “Cultura Inculta”, e debicam aqui, picam acolá, remexem acoli, e quando se espreme o seu pensamento, muito pouco.
Querem vos confesse uma coisa? Já mete náusea o termo “eduquês” e a maioria das pessoas que o usa nem sabe o significado da palavra e no contexto em que é usado, não sabem sequer do que falam. Ignorância pura e sobretudo desonestidade intelectual quando se ataca Rousseau, Dewey, Freinet, Montessori, Neill, ou Bettelheim, ou mesmo João dos Santos, sem ter lido uma linha da obra destes mestres, ou no mínimo lendo livrinho do estilo “ Pedagogia para TóTós” sobre os mesmos., ou mesmo assimilado seja o que for da evolução do trabalho magnífico desta gente.
Já agora, li os artigos e livros destes “Facultés”, que é para não me acusarem de má- fè.Guardo-os para Memórias Neutras.
Ainda à pouco, se viu algo impensável: o desconhecimento mais absurdo , com comentários larvares de ignorância, geralmente disfarçada em alguns colegas de arrogância, sobre o Projecto da Escola da Ponte e do seu sucesso no Mundo. Mas não! Tudo o que desconhece, tudo o que não seja igual ao nosso “mundinho”, é mau, é mentira, é suspeito! Se isto não fosse trágico dava-me vontade de rir, confesso.
Tenho para mim que na formação inicial docente, e mesmo nos primeiros anos de vida profissional a formação em “Histórias de Vida” em Oníricas, em Diarística Docente, Colocação de Voz, poderia ajudar os jovens Professores na sua formação. Porque defendo isto? Simples! Estou convencido, que se é melhor Professor se conseguirmos ter um diálogo com a nossa História Pessoal, com o “nosso “ Chagrin d’école”, com o nosso passado como alunos. Sim , um ajuste de contas, franco, objectivo, sentido com o nosso ser menino e adolescente de vinte, trinta, quarenta anos atrás e o ser menino numa escola real, dolorosa nuns, mais feliz noutra, para o aconchegarmos no nosso presente, no nosso ser profissional. Se continuarmos a recusar essa revisitação, se gostamos de frases feitas do estilo “Se sou hoje assim a todos os meus Professores o devo” – Mas sou como? Que parte de mim deve aos bons e a outra parte aos menos bons? ( Gostaram dos insultos, da ditadura, do medo, da dor que deveras sentiram , mas agora escondem fingidores?-Desculpem mas não sou adepto do sado-masoquismo) se “continuarmos a esconder que muitos de nós eramos alunos fraquinhos, distraídos, cabulazinhos, e até indisciplinados,alguns uma espécie de “Cancre” ( à frente explico) e continuarmos no embuste de “eu não era assim” , mesmo tendo sido, então teria que vos explicar onde nasce muita tensão e desilusão docente. ( não , não é para deixar os alunos fazer tudo o que eles querem, é precisamente o contrário e, como estou a escrever para Professores, não explico, porque meia palavra basta).
E a respeito de tudo isto, os dois autores foram referenciados no Blogue do Matias Alves ( onde poderia ser?). Um apressei-me a “amazonar-me” dele por quase 30 Euros e é um livro verdadeiramente extraordinário, daqueles livros, como dizia Fyn, Livros AH! Daniel Pennac, a mostrar que foi um “Cancre” escolar e que o Seu Chagrin da Escola, não o fez menos pessoa e menos escritor e a isso obstou a garra, a ternura, o amor de alguns Professores que nele acreditaram! Está-me a deslumbrar e a humanizar-me a reforçar-me no meu caminhar escolhido.
O Outro que foi referido pelo MA, é uma parte de um fabuloso livro, de Carlos Lomas, um dos melhores livros da minha Biblioteca sobre a escola e a docência, que já possuia vai para uns tempos, embora me visse grego para o encontrar. Um livro que não sei descrever, porque é um livro fulgor, refulgente! Quase 500 páginas de memórias da escola e das aulas em prosa, em poesia, e , para os que me conseguiram ler até aqui, e não gostaram, só um aviso: olhem que as memórias da escola, de aulas e de alguns Professores de : Albert, Neruda, Marcial, Canetti, Machado, Quevedo, Vargas Llosa, Gomes Ferreira, Unamuno, Saramago, não são lá muito coloridas e prazenteiras!
Mas hei-de escrever das minhas e boas memórias, dos tais Professores que guardei na alma para memória presente e futura!
10 comentários:
Você escreve sempre com uma paixão que leva tudo à frente, Homem! Olhe, eu fui das sossegadinhas, mas depois de ter precisado de três anos para convencer o meu Pai a deixar-me ir para o Liceu, o que eu queria era aprender. Aprender! Porque depois, em casa, tinha de trabalhar e não podia estudar. Tinha catorze anos enquanto as outras tinham 10 ou 11. Mas tive a Dra Laura, a Matemática, que nos propunha problemas, desde o 1º ano, interessantíssimos e que fazia acordos connosco para usarmos a nossa cabeça e não pedirmos ajuda em casa. E as gargalhadas dela, não de troça mas de puro divertimento, quando alguém se saía com uma resposta estapafúrdia!E que depois ela destrinçava como se tivesse adivinhado o processo mental do aluno. E a Dra. Hermínia Roberts, a minha Reitora, que me fez adorar os Lusíadas e manter a adoração até hoje. As milhentas histórias que ela contava quase sobre cada verso, o orgulho com que nos enchia por Camões ser Português! Ela era gorda, de facto, mas tinha aquele calor humano e acolhimento que é apanágio de muitas pessoas gordas e realmente, apesar de ser a Reitora, olhava muito para nós, as muitas brancas e as poucas negras e, certeiramente, chamava uma ou outra para conversar. Para saber se tínhamos problemas. Foi ela que descobriu que eu era míope de nascença. Aquele corpo redondo a ler Camões como se fosse a mais esbelta actriz a actuar num drama de Shakespeare,aquela entrega total, sei-o hoje, valia mais do que muitos Powerpoints, filmes, sei lá que mais.Estas duas, pelo menos, estiveram sempre por detrás de mim, a segredar-me o que fazer. Agora estão no Céu, certamente preocupadas por não poderem vir cá dar uma ajudinha...
A Carmo Cruz tem razão: "escreves com paixão...." E depois do belíssimo texto que aqui te deixa a Carmo...mais palavras para quê?
Só de deixo uma palavras da Zenita Guenter:
“As crianças aprendem o que são e quem são através do clima da sala de aula, do tratamento recebido pelos professores, das implicações abertas ou veladas de seus próprios sucessos e fracassos. E são essas aprendizagens não planeadas que provavelmente produzirão efeitos mais significantes e permanentes do que aquilo que é ensinado, propositadamente, pelo professor.”
Carpe Diem
De um comentário que a CARMO CRUZ me deixou e que te diz respeito:
"E este foi um bom Instante. Foi (e é) um Instante Existente... Esta é para o Existente Instante, que também já ganhou um lugar na minha caixa de Afectos..."
Carpe diem!
Definitivamente, uma estrela que nos guia e aquece.
Ó AMIGO, aparece!
Estou(amos) com saudades tuas!
Preciso (amos) de ti.
Da tua luz e do teu calor.
Boa tarde, Existente Instante. Olhe, eu voltei apenas para juntar va minha voz à dos que me precederam e dizer que sinto também a sua falta. Todos os dias visito os Amigos da minha caixinha de Afectos, onde você está, e paro aqui na sua aula acontecida (que bom!)para o encontrar de novo. Encontro-o sempre, mas isso é porque não resisto a ler as suas palavras sempre arrebatadas, temperadas com três especiarias de sabores muito diferentes: Esperança, Ironia e um pozinho de Desânimo. E depois, quando lhe parece que é tempo, apenas, aí vem outro grito a acordar as letargias. Pois é, tenho saudades suas. E depois?
Depois, espero por si. Aqui. Neste Existente Instante. Posso dar-lhe um abraço? Carmo
Pela Blogosfera decorre uma iniciativa com a finalidade de homenagear blogs amigos que nos visitam ou visitamos e que, de alguma forma, possuem afinidades connosco.
Nesse sentido, o REVISITAR A EDUCAÇÃO, atribuiu-nos o selo "um bom blog sim senhora" de acordo com as seguintes regras:
1- Este prémio deve ser atribuído aos blogs que gostamos e visitamos regularmente, postando comentários;
2- Ao receber o selo "é um blog bom sim senhora!!" devemos escrever um post incluindo: o nome de quem nos deu o prémio com o respectivo link de acesso + a tag do prémio + a indicação de outros 7 blogs;
3- A tag do prémio deve ser exibida no blog.
Assim, POR UM MUNDO MELHOR, declara que os BLOGS (por ordem alfabética) que visita regularmente e nos quais comenta, entre outros que igualmente visita e comenta e lamenta não nomear, são:
ANABELA VASCONCELOS
BALANCED SCORECARD
DIZ QUE NÃO GOSTA DE MÚSICA CLÁSSICA?
ESCOLA CAMPOS MELO
EXISTENTE INSTANTE
TEMPO DE TEIA
TERREAR
Piruetas de Avó da CARMO CRUZ
É com imensa alegria que vejo a CARMO CRUZ com o seu próprio BLOG. Estávamos habituados a ver os seus textos no TERREAR do JMA e, modéstia à parte, um que outro texto aqui no POR UM MUNDO MELHOR, além de muitos comentário cheios de energia e de grande oportunidade em muitos blogs. Parabéns e que boa forma de começarmos o Dia do Trabalhador.
a ver aqui: http://avopirueta.blogspot.com/
Caro amigo!
Habituado á tua presença sempre amiga, o teu silêncio deixa-me preocupado. Espero que esteja tudo bem contigo.
Um abraço.
Caro colega, obrigado pelo seu post no blog do Fascinio das palavras, recomendo também a consulta ao blog http://florestadasleituras.blogspot.com/ e veja a reflexão da colega Isilda sobre o Chagrin d'école. Está realmente muito boa.
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