Lembro-me dele .
Lembrar-me-ei sempre com nitidez cristalina! O Bento!
Ano lectivo de 1983-84, Celorico de Basto, no meu período de Professor "Vá para fora cá dentro! "; dois anos de um contrato plurianual de "roupa limpa de ida e roupa suja de volta", como Professor provisório de Português e História.
Foi aí que o conheci , ao Bento. O Bento era um miúdo de 11 anos, olhos expectantes, curiosos, ávidos de conhecer, louro, ladino, em suma, um "puto giro", entre aquilo que poderei definir, estilo "menino Jesus" ou como costumávamos chamar na minha Sé do Porto, a miúdos como ele, estilo, "caga-tacos". Nas aulas uma atenção extrema, por vezes, a boca aberta de espanto à novidade da aula de História do 6.° Ano, uma admiração vidrada nos olhos pelo seu Professor do Porto, que lhe trazia o sonho da cidade que ele nunca tinha visto, como nunca tinha visto o mar.
Raramente participava e quando o fazia, empinava o tronco, esticava o pescoço como que a ganhar importância e disparava a resposta ou a pergunta "traiçoeira", como aquela que me fez com vozita esganiçada, desafiadora, com trajeito celoricense , acerca de um qualquer gráfico de pluviosidade " Ó Professor, antão chove em milímetros ?? ".
O Bento, que no inverno cheirava a lenha, que durante todo o ano apresentava as unhas negras da terra que amanhava com o pai fora das aulas, que nos cadernos era difícil distinguir a caligrafia das nódoas, mas que sorria, de um sorriso estranho, mas belo: era um sorriso radioso, solar, mas suave, tão diferente de outros dois sorrisos com que mais tarde me vi confrontado, sorrisos "bovinos" ou "amanteigados" !
Um dia ao escrever o sumário no quadro, reparei num esgar de dor no seu rosto ao tocar com a mão esquerda no rebordo do quadro. Que não tinha nada! Que era uma "feridinha" num dedo! Um pano, que só a muito custo, posso chamar pano, já que farrapo é uma expressão mais apropriada, uma cor indefinível, entre o negro e qualquer coisa que já foi branca, envolvia o dedo indicador esquerdo do Bento, que parecia ter outro dedo dentro, pelo diâmetro. " Foi a segar palha para o gado, mas o meu pai, diz que não é nada e a minha mãe pôs-me este "penso"".
Oito dias com este "penso" e os meus piores pressentimentos a tomarem forma: uma enorme infecção a alastrar naquele indicador do Bento! Quis ver, mas pareceu renitente, depois lá deixou desamarrar o nó que envolvia o farrapo. Quando lhe toquei o dedo,ouviu-se um ai abafado, logo seguido de "não foi nada!". Um dedo? Uma batata amarela e branca de infecção e pus, um golpe entreaberto de cerca de 3 ou 4 cm! Mandá-lo ao Centro de Saúde ? Fazer aquilo que me estava a mandar o coração ? já tinha tirado um curso de "primeiros socorros de humanidade" no Marco de Canaveses, no serviço militar, em Nelas, continuar a prática ali, algo me ordenava! Não era enfermeiro, não era médico—mas era Professor a fazer a aprendizagem de ser humanidade em gente! " Vou-te fazer o curativo, mas isto vai doer, Bento ! " . Olhou-me entre surpreso e ofendido, por eu duvidar da sua qualidade de Homem : " Eu não tenho medo! Era o que faltava, não sou nenhum "cachopo" ! ".
Chamei a funcionária para me informar da farmácia da escola. Que não havia, ou melhor, havia, mas era como se não houvesse, porque não havia nada...alguém tinha...tinha acabado! Percebi! Puxei da carteira, tirei não sei que nota, e mandei um aluno à farmácia no centro da vila buscar álcool, água oxigenada, tintura, algodão, gaze,ligadura, pomada cicatrizante. Era perto e o miúdo voou! Na mesa do professor, eu, o Bento e a parafernália curativa. Na turma a estupefacção, misturada com o mistério e admiração." Vamos lá Bento, coragem! " . Riu com benevolência! Ao primeiro aperto do dedo, o que aconteceu, não posso contar por decoro higiénico, apenas e só, que a minha gravata e casaco ficaram estilo "arte moderna" , um pouco à pintura de Jackson Pollock! Continuei o "torniquete" até o dedo do Bento ficar com um tamanho aproximado de um dedo indicador! Então, de soslaio, reparei que o Bento se tinha virado para o quadro e sem um som, deixava correr as lágrimas de dor, para a Turma não ver o "cachopo" que queria ser Homem chorar! Fiz-lhe uma festa no cabelo louro e crespo. Fungou e esboçou um sorriso! Continuei o tratamento até o Bento ter um curativo bem bonito, ou pelo menos, uma dedeira de ligadura e adesivo, bem como um rosto seco de homem outra vez- que ali naquela terra ainda era assim!
Imaginam os leitores o resto desta história ? Claro! Nas aulas subsequentes, a primeira coisa que o Bento fazia quando entrava na minha sala era levantar o dedo e dizer:" Professor, olhe o dedo!" " Professor não se esqueça do curativo!". E as aulas de História começavam com dez minutos de enfermagem e, todo o tempo do mundo de risos e felicidade! E o dedo do Bento foi melhorando, até só ficar um fio de recordação- cicatriz que fechou uma ferida, mas que abriu corações em ternura!
Tornei-me o ídolo do Bento. A sua alegria quando me via, era proporcional à minha pelo seu sorriso e força de vida! Certo dia, à minha espera na porta da sala de professores quando já tinha tocado para entrar. " Olá "segador", estás bom?". Bruscamente arranca-me a pasta. "Por favor, Professor, deixe-me levar a pasta?!". " Dá cá isso, pá!" - atirei , mas já corria pelo corredor, rindo,como só aquele "filho da mãe" sabia rir, tendo ainda tempo para um " Não dou, e não seja mau! ". Percebi então que aquele puto me queria agradecer do fundo da alma dele, a minha atenção o meu simples gesto, o ter gostado dele, o tê-lo olhado como gente e, aquilo era a sua paga, o seu acertar de contas, a sua partilha de ternura. Ali não havia "graxa", nem subentendidos, havia uma pureza de sentimentos, um "gosto de ti Professor!", que se consubstanciava num gesto: o levar-me a pasta para a sala nos dias das aulas de História. A turma sabia, a turma aceitava, era a pasta do Bento que lhe pertencia por natural direito!
Mais tarde, na minha vida de Professor, outras dádivas de gratidão tive por parte dos alunos, principalmente em Recarei-Sobreira, mas isso, poderá ser objecto de outra crónica. Por onde andarás Bento? Terás ainda a cicatriz no dedo? Que curativo fiz na tua alma? Sabe, que me ajudaste a crescer, e hoje nesta escola de subúrbio onde trabalho, não há dedos a curar nos meus alunos, há sim em alguns,feridas profundas d’ alma e, essas não se curam com álcool, nem pomada, porque muitas vezes fecham com o mal lá dentro e é tão difícil tratá-las!
(Existente Instante)