domingo, 23 de dezembro de 2007

A Minha Mãe II

Exame da 4ªClasse por favor, com sapatos e vestido emprestados pela professora; Comunhão cristã no mesmo sistema de empréstimo e, ei-la preparada menina para ser mulher.Com doze anos, trabalhadora na fabrica de molas da roupa Lacerda & Cª, onde se manteve até ao casamento com vinte e dois anos. Não sei se por imposição de meu pai, por decisão sua ou, costume à época, deixou de trabalhar para assumir o seu papel de esposa e mãe. Algumas vezes se arrependeu! Ouvi-a várias vezes lamentar-se da parca reforma que receberia por não ter trabalhado os anos suficientes, ouvi-lhe muitas vezes o lamento entristecido pelo facto de depender da "miséria" do dinheiro que meu pai destinava para casa, assisti a belíssimas prelecções a minha irmã para ela "ganhar o dela" e não depender de nenhum homem! Quantas vezes perante o meu olhar enraivecido e cúmplice atirava: "o teu pai pensa que o dinheiro que dá estica! Se não fosse algum da pensão passávamos fome! Pró futebol, tabaco e café tem ele dinheiro, agora pa­ra casa acha que chega o que dá!” Mais tarde descobri que era verdade, o destinado à família era incrivelmente baixo em relação ao que meu pai ganhava. Talvez agora perceba o regatear de preços, a viagem pelas lojas a procura do mais barato, o sentido de aproveitar e poupar de minha mãe!

Poucos anos depois do casamento, o assumir o seu posto de criada - governanta da pensão da minha avó Eva, embora o fosse sempre mais a primeira! Só nos últimos cinco anos anteriores a nossa saída houve uma criada para ajudar. "Uma escrava, uma moira de trabalho, foi o que fui!", costumava e costuma dizer! E foi! Uma autêntica escrava! Nos períodos em que a avó estava na pensão, ainda existia ajuda, agora sozinha!? Treze, treze quartos para arrumar, alguns a dobrar, pelas aventuras amorosas de clientes, roupa aos quilos para lavar diariamente, compras, comida ao almoço e jantar, filhos a nascer e a criar...minha querida e extraordinária mãe! Como te trataram, como te deixaste tratar! Aos meus olhos de menino, o choque maior era outro: o subir e descer escadas! Dois lanços, trinta e duas escadas no total, que subia e descia dezenas de vezes ao dia, ao sabor de uma miserável e odiada campainha! Trinta e duas escadas "galgadas"numa ânsia de não perder clientes! Estava na cozinha ou na lavandaria e tocava a campai­nha, estávamos a almoçar ou jantar e tocava a campainha e, minha mãe lá descia as escadas para depois as subir! De noite e madrugada o mesmo toque cinco, seis vezes ou mais e o mesmo ritual a repetir: levantar, vestir o robe, atender os noctívagos, indicar o quarto, retornar à cama, tudo isto pe­rante o ressonar de meu pai! Alguma paz quando a pensão esgotava e, se desligava a campainha, mas mesmo assim, alguma " cavalgadura" não o percebia e batia furiosamente com os "cascos" na porta de entrada! Este ritmo in­fernal ainda era entrecortado pelo fechar da porta na cara de algum bêbado, o pegar na vassoura para mostrar a "porco de língua" que ela, minha mãe era mulher de respeito, o barulho de rixa de rua, o falar das prostitutas.

Escrevi vassoura, e este objecto faz-me lembrar histórias verdadeiramente rocambolescas; vassoura sempre foi objecto de culto para minha mãe. Tinha várias espalhadas pela pensão e, usava-as virada ao contrário com duas funções: arma de ataque a "porco de língua" e "levanta pai"! Minha mãe acreditava que uma vassoura escondida e virada ao contrário no seu quarto, ajudava o pai a acordar do sono pesado que tinha! Crenças!

Nenhum comentário: