domingo, 21 de setembro de 2008

LEITURAS DE FIM DE VERÃO V

Mais um capítulo em extracto do livro ainda não identificado :

1ª Lição
Sumário:
Apresentação

“Estamos apenas no começo (alimentando ainda uma ilusão de liberdade e de esforço), e por isso é necessário que vos diga quais são as vossas tarefas, o que se espera de vocês, os deveres e os direitos que vos assistem. (...)


Também isso já esta planeado por mim, que mais não fiz que relembrar-me um pouco, para um pouco vos apreender e juntos atravessarmos (embora por curtos momentos), o proibido terreno de nos próprios, deixando que o mundo o penetre e lhe pertença (que isso sim, seria aprender)! Mas não me perguntem o que aprenderão, dia após dia, semana após semana, que receio não ter resposta (só sei que, mesmo o que nunca acontecer, permanecerá coberto sob uma sedução lançada por mim, que vos atrairá, captara os sentidos, disfarçará o mal-estar ou o tédio, convencer-vos-a a todos que algo aconteceu aqui, nesta sala). Tudo enfim passara depressa, deslizando de espírito leve ate ao fim do ano, que outro ano trará. Confiem em mim, que eu amenizarei a vossa passagem por este lugar (para que nele se não percam completamente).


Não sei se fiz bem em lhes dizer estas coisas, levantei apenas a ponta do véu no medo desse assombrado espaço que tão bem sabermos rodear. Com a mesma habilidade afinal com que eu inventarei o interesse no desinteressante, a cor no deslavado, a luz na sombra, a aventura nesta rotina diária, só para que no fim, até gostem das minhas aulas, e acreditem descobrir e inventar o que eu queria que dissessem (que isso é, afinal, ensinar).


Olhem bem para mim, já me conhecem, não é verdade? Já perceberam que sou dos professores que conversam, que vos ouvem (naquilo que vos é permitido dizer), dos que vos deixam estar à vontade (no constrangimento do espaço que nos rodeia), dos que se interessam pelos alunos (que isso é tudo o que vocês são, aqui) dos que são justos (para quem se não recuse a essa justiça), dos que, enfim, tomam a escola mais suportável (e o esquecimento menos doloroso). Vejo que nos vamos entender, ate porque eu também já vos conheço. Não, não se espantem! Quando o tempo está devidamente organizado, não há tempos mortos ou desperdiçados em procuras vãs: aqueles que, antes de mim, a vós se dedicaram, ainda não vos abandonaram completamente. Através de mim eles aqui estão, proclamando quem vocês são! Sei que tu, por exemplo, tu que me bebes as palavras e que te sentirias perdido se eu te mandasse levantar e trocar de lugar (porque esse lugar já e o começo da arrumação da tua vida, aqui) és um bom aluno, colaborador e obediente! Mas vocês aí atrás, sim, vocês dois que me observam entre sorrisos e cochichos (para quem eu mereço cada palavra que digo, captando nos vossos olhos irónicos as dúvidas que tento abafar, nos vossos gestos descuidados, o desconforto dos meus próprios) sei que não costumam cumprir, que perturbam a ordem e provocarão a minha resistência (e que, todos os dias, me acusarão por assim o fazerem: por isso, vos abandonarei pouco a pouco). Sei também que vocês que, ao entrarem, não hesitaram em se sentar ao pé uns dos outros. exibindo um à-vontade libertador, costumam ajudar (no cumprimento destes nossos papéis) activamente. Têm ideias, e irão com certeza contribuir para que as aulas sejam animadas (talvez que a memória do que são, transporte odores de vida, mundos recuperados por escassos minutos, alívios passageiros na consciência de tanto vazio). (...)

Depois, vocês também constituirão a prova de que eu me soube desempenhar das minhas funções (representar este meu papel de boa ensinante), contribuir para esse fornecimento de futuros adultos bem integrados, que é essa a grande finalidade da escola (senão como convencer-vos a este tao longo sequestro?). Em nome da justiça social a bitola tem pois, de ser igual para todos (alunos-consumidores dos mesmos bens, integradamente nivelados ou niveladamente integrados, quem sabe?) avaliados pela invariável linha de um modelo que vos desenhará o perfil (diluindo porém, na harmónica sombra do trabalho conseguido, o desintegrado rosto de cada um).


Se restarem dúvidas ou houver perguntas é bom que as apresentem agora aqui, pois é aqui e agora que a minha disponibilidade se propõe resolvê-las. Aproveitem-na que amanhã temos outras coisas a fazer!”
Bem, está a tocar! Não se esqueçam de preencher os inquéritos e, mais uma vez, votos que saibam cumprir as intenções que vos propomos (em nome dos que, aqui, assim nos querem).
Fico-me a vê-los ir por entre o gesto maquinal de assinar o livro de “ponto”, honorável fecho do ritual cumprido, num espaço que o último aluno a sair, quase com crueldade, esvazia de vida e de sentido. Inútil, aflora-me o desejo de o reter, como uma tentativa vã de tudo recomeçar com alguém com quem tudo correu mal, e que, por fim, deixamos partir, sufocados pelo grito que o traria de volta, mas que, silenciosamente, guardaremos para sempre com a mesma premeditação como soubéramos antes de desfazer em nada, cada único e insubstituível momento que nos poderia ter salvo. Fecho, portanto, a porta.




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