O Acertar das Agulhas
(ou o desacerto de um mesmo começar)
“ A mesa é grande e a sala arejada, cpm larga vista sobre campos entalados entre pedaços de urbanos viveres e memórias rurais. Aqui temos a sorte de todo este desafogo ou talvez apenas o esforço do nosso adquirido isolamento.
Com o cuidado distante que a estranheza dá e uma certa indecisão nos gestos, vão os corpos escolhendo lugar a volta da mesa, timidamente depondo o que trazem sobre o amplo tampo, enquanto alongam os olhos pelo azul a que, uma vez sentados, tudo se resumirá lá fora.
Fico-me olhando-o também, como o vazio deixado por quer se fosse, sentido o cansaço da resignação encher-me devagar, enquanto devagar vou esperando que se abram livros e se oiçam vozes para que, também eu, me encontre ali. E sempre assim no começo, uma tristeza intolerável, um peso que se abate e que preciso levar a bom termo. Ouvir-se e dizer-se coisas que já antes ouvimos e dissemos e, contudo, não foi por isso que as desacreditámos.
E assim exactamente que se começa todos os anos: gente enfadadamente procurando lugar neste lugar, a volta de uma mesa, em frente a outra gente, arrastando o fadário de uma missão que não teria escolhido cumprir se escolha tivesse encontrado a espera de seus saberes; gente enfadadamente procurando lugar neste lugar, a volta de uma mesa, pensando na outra gente por quem arrasta o fadário de uma missão que afinal escolheu cumprir para executar seus saberes. (...)
E assim exactamente que se começa todos os anos: repetindo-se enfadadamente o mesmo começar.
Entretanto os livros vão-se abrindo lado a lado a grossos dossiers onde religiosamente, se armazenam os programas ou a importância de "qual saber», superiormente decretado e a sombra do qual se ajustam as opiniões e discordâncias, apaziguadas por essa decisão longínqua mas poderosa, impondo ordem aos anseios de cada qual. E assim, ordenadamente, ficamos a saber como se o não soubéramos antes “o que vamos ensinar” e, mais importante ainda, com os olhos no calendário, contamos os dias que nos levarão a fazê-lo, pois o tempo é limitado e urge cumprir os dogmas do grande dossier. (...)
Caros colegas, mãos à obra, demos asas a imaginacão e demonstremos que ainda não esquecemos o livre-ser que nos vai na alma! (Resistindo embora, com que heroismo!)
Todos os anos por esta altura, quando arrumados os assuntos desde logo arrumáveis, parece que o ânimo me volta, o peso abranda e, por momentos, volto-me a conhecer, num ressurgimento quase ingénuo. Ah, o “,como”! É aí que tudo muda, é aí que nos moveremos no nosso próprio espaço! A grande oportunidade de nos sentirmos, de realizarmos a nossa imagem de “escola-viva”. ... de conquistarmos os nossos alunos ... de ficarmos na memória de alguém... marcos de mudança ou recomeço... como iremos fazê-lo?! Que engenho e arte saberemos nós pôr por sobre o que outros, antes de nós, já nos fizeram o favor de colocar nas primeiras paginas de cada programa? (...)
Colegas, ultrapassemos a inaudível distância entre eles e «aquilo., o estranho desconhecimento, aceite como coisa banal, do que esses outros querem ou gostam, esse mudo desconforto de quem sabe já que, no fundo, por mais voltas que dê, o ponto de chegada está já dolorosamente visível desde o momento em que, juntos, fingiremos partir.
Está pois, aberta a discussão: o ponto na ordem dos trabalhos é a medida do nosso engenho, o tamanho de nossa arte ou talvez apenas. a outra dimensão de nossos poderes.
Uma interrogação quase frenética percorre a mesa, enquanto de dentro, me vai crescendo um vago mal-estar. Folheiam-se livros um pouco ao acaso, procuram-se novos papéis afadigadamente, olha-se com fixidez um ponto no tecto ou o azul que lá fora permanece. Nalguns rostos há trejeitos de esforçado pensar, noutros apenas a plácida expectativa de quem só espera. Há até já quem olhe para o relógio, que, mesmo para os grandes feitos, o tempo não pára.
Finalmente alguém aclara a garganta e se pronuncia sobre a necessidade de “estabelecer resultados específicos, claramente expostos” , pois serão eles que nos condicionarão o caminho, ou será que pela cabeça de alguém tivessem passado os passos escorreitos de um caminhar livre? Condicionados pois, partimos em busca da clareza dos resultados.
Encaixam-se as peças, o puzzle completa-se: os alunos memorizam A e compreendem B para depois compararem com C tudo devidamente justificado, e claro! Os alunos analisam D, o que, atenção, já será uma situação nova, fazem a síntese com as partes encontradas e finalmente os alunos avaliam de sua justiça, o que a nossa justiça lhes consentir.
Sente-se um certo alivio no ar, já se avançou qualquer coisa e, o facto de estarmos de acordo como que nos aconchega do esgotado esvaziamento a que, em vão, tentamos escapar.
Condicionados seguimos, mas com que clareza e empenho, voltados para as metas a atingir, são claras como água! Dediquemos-lhes o nosso melhor "savoir-faire", seleccionemos para elas os mais aliciantes meios, afinal o tal pequeno espaço onde a desejada uniformização nos concede ainda um pouco de fantasia, «o pauzinho na engrenagem", arrisca alguém! Ou não será?
O silêncio volta a sala arejada e, pelo azul que se estende da larga janela, espraia-se agora, funda e secreta, a vontade de um querer imaginário.
E se, de repente, metêssemos os livros na gaveta e olhássemos finalmente os que, em frente de nós, se sentam para, em jeito de desculpa por tudo o que nunca fizemos, os ouvirmos contar o mundo e por eles descobrirmos segredos que a nós, sabedores oficiais, nos tinham incumbido de revelar?
E se, simplesmente, abríssemos a porta que nos separa do lado de lá e, largadas as máscaras que, irredutíveis, nos colocam num frente a frente intransponível, nos lançássemos a descoberta do que pensáramos ser nos a saber para tudo aprendermos de novo corn o encanto de um primeiro olhar?
E, se nada chegássemos a dizer de coisa alguma, se desistíssemos simplesmente de ensinar, porque seria do nosso silencio que nasceria a curiosidade e a inquietação que os faz querer saber?
Mas não, aqui nunca nada assim se fará. A própria essência deste lugar o impede: o portão que o cerra, o gradeamento que o circunda e cada porta que, ao fechar-se, sacraliza o reino de cada um, nos separam irremediavelmente de tudo o que faz a vida e semeia o saber. Estes caprichos que de longe nos vem, não passam de um louco desejo de redenção, que nos aflige talvez pela traição que no fim, acabaremos sempre por cometer no abandono quase premeditado daqueles para quem nunca estaremos afinal disponíveis.
Não, não abriremos as portas nem saltaremos a vedação A nossa voz continuar-se-à a ouvir, transmissora única das verdades desta doutrina. Manteremos os nossos livros abertos como bíblias e tudo se verá pelos olhos de quem, de novo, nada irá ver. (...)
(Camuflagens novas para velhos saberes!)
Arrecadam-se os livros, fecham-se os dossiers. Metodicamente tudo é arrumado nos seus devidos lugares. Terminou a reunião na grande sala arejada do primeiro piso, ao fundo do corredor.
Absortamente, como se na memória buscasse um elo, olho o horário, conjunto de letras e números, trancados em alinhados espaços, que escondem nomes e caras, esperanças e derrotas e para quem eu, ainda sem conhecer, ja escolhi caminhos, desenhei quereres, roubei sonhos, com a arrogante certeza de ser eu a professora.
Absortamente, sobre as coisas importantes que não nos esquecemos de planear sobrepõem-se agora, as sombras desses rostos, turvando-me a visão, quase como urn aviso ou uma suspeita. No fundo, só não houvera tempo para sobre eles nos interrogarmos. “
Um comentário:
E se, de repente, metêssemos os livros na gaveta ...
E se, simplesmente, abríssemos a porta...
E, se nada chegássemos a dizer de coisa alguma...
... se desistíssemos simplesmente de ensinar...
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Simplesmente...
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Carpe diem!
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