quinta-feira, 9 de outubro de 2008

SILÊNCIO...E MAIS

Mitómano de si ? Génio da manipulação?
Ou...
Essência primeira da música, encarnada no silêncio interior de um intérprete?

Não sei. Ouço Gould, Glenn Gould e Bach, Johann Sebastian, e comovo-me até às lágrimas. O único pianista que os meus puristas ouvidos, autorizam a “profanar” o meu Bach, porque Bach é e será o som aqualino do cravo, sobretudo os dedos marítimos de um Gustav Leonhardt, de Gilbert, de Moroney, ou Staier.


Mas Gould e o seu piano não. Quase como confissão, como sussurro, as variações Goldberg BWV 988, pedem permissas para entrar, abrir os meus salões de silêncio, e brincar cá dentro, no meu menino extasiado de mim que ainda gosta de assomar à minha tranquilidade.


Nada mais...reclino-me e recolho-me às planuras do silêncio. Ouço Gould e lembro-me de Gould:

“sempre tive uma espécie de intuição...por cada hora que passamos com um ser humano, precisamos de X horas sozinhos. O que representa esse X, não sei, podem ser 2 , ou mais, ou menos, mas é substancial”



Caminho com a 3ª Variação: Canon em uníssono com voz de baixo independente e deixo de acompanhar a independência do baixo. Levanto-me por momentos e recolho o “Glenn Gould Piano Solo” do Schneider e leio compassado agora à maneira de um “passepied :


“ Procurava a dor como quem inventa nascentes. Procurava os equívocos como uma criança que se disfarça. Queria ser possuído pela sua alma, a ponto de esquecer que tinha um corpo” (...)


Ouço a 7ª variação “como uma Giga”

“ As mãos, as suas mãos que ele próprio observava como coisas incompreensíveis, desligadas; a mão pertence ao piano, não ao pianista. Vejam-no debruçado, abraçando o teclado, como se não quisesse mais piano entre ele e a música e tentasse apagar-se ao piano , confundindo-se com ele.” (...)


"Por vezes estendia-se tanto sobre o teclado que parecia que ia deitar-se sobre o piano, talvez enterrar-se nele. Quando Gould toca, uma espécie de vida floresce, cresce. Finalmente, é como se visse sem olhar, a alma é transportada, desabrochando em Deus. "(...)


Salto pastorinho de longas serranias na 9ª variação : “Canon à terceira com voz de baixo independente”


“Gould procurava algo impossível como a imaterialidade da música. No instante em que tocava o piano, assim que a música é personalizada, fecha-se sobre ela um espaço finito, uma deficiência, um despojamento e ocorre a queda inevitável – a música desaparece na sua própria criação. É só neste despojamento que algo começa a existir.” (...)


Sei agora o que é cativar - 13ª variação : “solo para a voz superior com acompanhamento de duas vozes graves, à maneira de um concerto”


“ Há quem toque música sem saber bem como. Ele tocava sem saber bem porquê. A música não é essencialmente a produção de corpos sonoros, de acontecimentos físicos, de festas galantes. É a busca da perfeição espiritual, tende para o incorpóreo, tem alma quando bem tocada. “ (...)


Êxtase da 15ª variação


“ Há duas maneiras de nos sentirmos arrebatados: divertimento e êxtase. O êxtase é um fio delicado que tudo une: música, intérprete e público. É no tecido da consciência partilhada, da interioridade. O êxtase não tem por objectivo ignorar o corpo, mas sim afastá-lo de si, deportá-lo” (...)

“ Algumas das suas interpretações estão pousadas na margem do mundo, numa luz que parece emanar do interior da obra, luz sem matéria, sem espessura, sem cor, esta luz que não espera por nós, uma luz que não existe antes de olharmos para ela”


Deixa afagar o meu sonho – 21ª Variação – “Canon à sétima em sol menor com voz de baixo independente”


“ O que diz a noite quando tocada por um raio de claridade? E por vezes...o silêncio, todo o silêncio para não respirar, como quando alguém expira. Este abismo que se abre de repente sem sabermos se é dentro ou fora de si. Notas com tamanha densidade de luz, que pensaríamos ser apenas o reflexo de uma cavidade, que tem em si o seu próprio avesso, uma sombra que teria de expiar, de trazer do reino dos mortos segundo as leis do equilíbrio absoluto entre o visível e invisível. “ (...)


“ A música emanava dele, queria esquecer-se de si quando tocava, perder-se da vista nela, queria que a música se recordasse dele, parar o desgaste do tempo, conjurar a efemeridade de um concerto. "(...)


Êxtase continuado – 25ª variação: “Em sol menor para voz superior com acompanhamento de duas vozes graves, à maneira de um concerto”


“ O êxtase não é o facto de não ter centro de gravidade, mas sim tê-lo fora de nós. Gould gostava de melodia, mas uma só. Adorava esta forma que se questionava constantemente sobre a sua própria forma. Talvez precisasse de multiplicidade de vozes para que a sua própria voz pudesse ser ouvida.” (...)


Fim. Ponto final. Nunca o é com eternidade como limite. A voz dele por de cima da voz melódica de Deus? - “Aria da Capo”


“ O seu isolamento era uma forma de tocar as pessoas na sua própria solidão. Gould oferece-nos a amizade e a decência de não estar presente quando o estamos a ouvir.”


O silêncio o imponderável profundo e belo silêncio depois de Gould e Bach. O silêncio como ilha do silêncio. O silêncio como oásis no meu silêncio. Estou bem. Fractal de felicidade, de calmaria. Maré vaza em mim. Praia mar no meu lento longo olhar sereno. Mais uno, mais humano, mais limpo agora. Percebo agora mais do que nunca , o que desde jovem intui em Lucas 4. 1.2 “ Cheio do Espírito Santo, Jesus retirou-se do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde esteve durante quarenta dias e foi tentado pelo diabo”(...) . Ele como ninguém, esse grande e belo homem silencioso, fonte de palavra silenciosa de vida, queria o silêncio, precisava do silêncio, da revisitação do silêncio, para se reencontrar com o Outro silencioso D’Ele.


Madrugada de silêncio adentro. Reclino-me neste frágil cristal de silêncio, ouço as batidas compassadas do meu coração e comovido a leste de mim vou silenciosa e sedosamente beijar a minha pequenita E que dorme no seu silencioso sonho, afagar ternamente os cabelos da minha M, que vai conquistando os seus silêncios ao ruído que a rodeia e, olhar embevecido o meu F , ouvindo o seu respirar brisa ondulado. Depois...depois, ainda em silêncio deitar-me ao seu lado e enroscar-me nela Companheira de Jornada para silenciosamente e mansamente adormecer no seu silêncio.


Escrito hoje a pensar em muitas coisas:

- Por coincidência temporalmente na mesma altura, a autora de um dos sites não docentes da minha eleição, também resolveu falar silêncio de Gould simplesmente com esta frase de uma beleza poética luminosa “ gemidos de madrugada”.


- Para o Fernando Vasconcelos do “Diz que não gosta de Música Clássica” pelo excelente e humilde trabalho que tem feito na Web em prole da divulgação e amor da música dita Clássica


- Não sendo um homem de cadeias, para aquelas pessoas e sites de docentes, ou interesses em educação que considero equilibrados no seu silêncio e que visito com regularidade ajudando-me no meu silêncio reflexivo : O José Matias Alves, a Carmo Cruz, o Raul, a Teresa Teia, a Isabel Campeão das Memórias Soltas, a Fátima André do Revisitar, A Idalina da Paideia, A Turma A da Isabela e outros colegas, O João que tem um blogue que acha que ninguém lê, o João Ribeiro e o Nesta Hora, a Anabela Magalhães que não sendo o seu blogue o seu blogue é ela, a ematejoca. Isto sem rankings, sem grelhas, tabelas, ponderações ou afins.


- Por último , para os Meus Colegas de Departamento, que na 4ª Feira passada depois de tentativa de desatar o nó desta embrulhada, através de um pps meu, da entrega a cada de um CD ( actualização de um outro que lhes tinha fornecido em Julho) com 400MB todo empastelado com pastas com tudo e sobre tudo,legislação, documentos da Net, incluindo toda a papelada simplificada ao máximo, que a escola conseguiu esgadanhar, toda a documentação das minhas acções de formação (3!) sobre a temática, entenderam o meu pedido de “fazermos luto pela ADD” no nosso interior e passarmos por muito difícil que seja, a FAZER VIDA e PELA VIDA- SERMOS PROFESSORES NA NOSSA PROFISSIONALIDADE. E SERMOS PAIS E MÃES e NÓS, na nossa essência, na nossa cultura e inteligência de Professores! Nas nossas próximas reuniões ADD Out! Só materiais didácticos, diálogo sobre estratégias, dificuldades ou sucessos pedagógicos, histórias luminosas ou menos de vivência docente. Todo o meu apoio, toda a minha ternura por Eles, como sempre tive ao longo dos anos, todo o seu apoio, todo a sua amizade, senti neles.

Estamos nisto juntos há anos, vamos continuar nisto juntos, independentemente das formas de actuação/luta que individualmente sentirmos necessidade de assumir. Não tenho tendência de mártir, não os vou martirizar. Já me basta a legitimidade interior de por eles ter sido eleito por unanimidade, porque até essa se vai, se nomeado for por um futuro Director Executivo. Estarei com Eles, mas deles não serei jamais! Isso revolve-me as entranhas quase até ao vómito!


Queria tanto escorregar devagarinho nesta ladeira de suave declive da minha idade, juro que queria! Menino de carro de rolamentos da Sé e Rua Escura, agora contento-me com um deslizar em caixa de cartão, se possível com delicado empurrão.






2 comentários:

Raul Martins disse...

Mais um "instante existente", como bem gosta dizer a Carmo, que leio, interiorizo, bebo da beleza da escrita que é tão tua e rumino o seu conteúdo… E é por paixão, bem sei, mas sabe bem ler o que escreves. Obrigado pela partilha, desses “silêncios da madrugada” porque precisamos de bebê-los.
.
Ainda te atreverias a aventurar-te num carro de rolamentos… com uns empurrões delicados e apenas uns metritos?!… eu também tenho saudades…
.
Um abraço tribal.

JMA disse...

Há (alguma) esperança.